segunda-feira, 26 de maio de 2014

POR QUE VIVO?

A importância do aprendizado da observação através do desenho com Modelo Vivo é fundamentalmente histórica e observada ao longo do ensino das Artes. A figura humana é representada de alguma forma desde a Pré-História. Há registros de sua representação em cavernas, como “A Dama e o Corne” encontrado em Laussel, na França, feita no período Paleolítico-Superior, ou ainda a estatueta “Venus de Willendorf”, do mesmo período encontrada na Áustria; e ainda que o homem não tenha se prestado ao papel de “objeto de observação” naquele tempo, seu corpo foi reproduzido para o registro histórico.

A pintura e a escultura foram as principais solicitadoras da exposição dos corpos das pessoas. É certo que esculturas e desenhos datados da Antiguidade Egípcia tenham sido feitos à partir da observação dos corpos representados, dada a proporção e refinamento detalhado das obras. Mas é no Renascimento que a atuação dos modelos da figura humana, representados pelos artistas em suas obras, torna-se tão evidente e necessária permanecendo viva até os dias atuais a sua excelência.
Quando se observa o corpo de um modelo e suas expressões para representá-los nos desenhos, pinturas, esculturas e fotografias, a relação indivíduo-coletivo se torna plena de questionamentos relacionados ao autoconhecimento e culminam na compreensão e respeito da individualidade humana. Além, é claro, do conhecimento da anatomia humana com suas devidas proporções, das relações do corpo com o espaço em que vive e com os objetos para ele criados, do aprendizado das expressões que este corpo pode conter e produzir e o quanto elas interferem e determinam o material visual trabalhado.

Os resultados desta observação influenciam diretamente as obras, proporcionando o aprendizado mais complexo e necessário para a Arte que se pretende realizar. Observar o outro para representá-lo num desenho é tornar-se um ser humano melhor, mais compreensivo das diferenças e particularidades humanas, reconhecendo no outro as habilidades e limitações próprias, aprendendo com o outro os sentimentos expressados através do corpo observado. Observar a figura humana com propósito artístico é colocar-se à disposição do crescimento intelectual e humano, é propiciar-se ver no outro aquilo que não se permite descobrir em si mesmo. E esta prática se realizada com frequência e planejada com pessoas que pensam o corpo artisticamente, transforma e enriquece o homem e o ensino artístico.





“Olhei no outro as buscas que deixei, Olhei no outro as falas que calei, Olhei no outro os mimos que guardei, Olhei no outro poemas que rasguei, Olhei no outro beijos que não dei, Olhei no outro rumos que voltei, Olhei no outro tudo aquilo que perdi e não recuperei, Olhei no outro paixões que recusei, Olhei no outro medos que não enfrentei, Olhei no outro desejos que neguei, Olhei no outro portões que fechei, Mas também olhei no outro o espelho em que me vi.” (J.Hollivier)

(Foto: Daniela Petrucci)

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Ser um Modelo Vivo

(texto escrito em 03 de Agosto de 2010 - Algum tempo já se passou e muita coisa mudou com a experiência. Em breve anotarei as mudanças e as postarei aqui. Enquanto isso, abro o Blog com ele para iniciar e compartilhar minhas reflexões sobre este trabalho tão especial.)

Autoconhecimento.
Para quê? Será mesmo tão necessário?
Conhecer tão bem a si mesmo pode levá-lo a um mundo de perguntas respondidas, e isso acaba sendo chato. Você se prepara racionalmente para as coisas da vida e penso que talvez isso possa tirar a vivência real e intensa dos momentos.

Quando em horas e mais horas imóvel na mesma posição sou "objeto" de estudo. Analisado minuciosamente centímetro por centímetro, dos pés à cabeça. Uma análise feita pelo artista do meu corpo no espaço e de minhas interferências neste espaço. Sendo assim, o que penso, o que sinto, como vejo e como me expresso em determinada pose, reflete no que o artista capta e registra em seu trabalho. Permanecer imóvel e nu diante de pessoas é sem dúvida um exercício de autoconhecimento. 

Momentos longos onde me vejo fora de mim. Como se saísse do próprio corpo, sentasse a alguns metros de distância e pusesse a me observar. Começo vendo os pés, onde estão, como estão, se estão limpos ou se não me esqueci de cortar as unhas, se estão contraídos ou relaxados. Vejo os vasos dilatados, veias saltadas que saem nas laterais, olho para eles e penso que são a base de tudo. Isso me faz refletir se estou "plantado" por inteiro no chão e se não estou, no mesmo momento, digo a mim mesmo: " - Trate de se apoiar direito na próxima pose Juliano". O que aconteceria se a pose fosse outra, onde os pés estivessem no ar? É óbvio que a raiz seria outra, mas o sentimento e o pensamento e fisiologia do corpo seriam os mesmos.

Alí sentado me olhando vejo os olhos. Para onde olham, o que veem, se estão brilhando, se estão cansados ou foscos. Se piscam muito tento contar quantas vezes piscam até ouvir que a pose acabou. Observo o quanto consigo manter o olhar vivo no ponto escolhido e vejo o quanto esse olhar diz tudo: como penso, como sinto, o que quero e para onde vou na próxima pose. Num instante penso se os artistas percebem isso; sim ou não isso não me incomoda nem interfere nos meus pensamentos e poses. Se vejo meus olhos foscos, interiorizados, automaticamente começo a pensar no "por que" estou assim, e isso me faz viajar num processo de interiorização, em perguntas que normalmente não seriam respondidas mas alí, tendo o tempo como aliado, consigo respondê-las a quase todas. Mas é claro que não se deve pensar que tenho tudo resolvido em mim, ou que não sofro com as dúvidas naturais de alguém com 32 anos. Quem dera! Se vejo meus olhos brilhando, expressando felicidade, transmito através de todo meu corpo a energia e a vibração de uma felicidade que contagia, tenho certeza, a todos. A felicidade também é facilmente "desenhável".

Da observação dos olhos abro o plano para o corpo todo. Vejo se a estética dele condiz com o que pretendo expressar na pose. Se a posição dos braços, mãos, tronco, cabeça estão na mesma vibração do que propus quando "caí" naquela posição. Os segundos que separam as poses são suficientes para a proposição da próxima pose. Não faço, geralmente, um roteiro e mesmo que o fizesse o "aqui-agora" é que determina o trabalho e a execução dele. Portanto, lido quase que totalmente com o improviso do momento, com a ação-reação do movimento, com a resposta do corpo às proposições da mente. Interessante o termo que ouvi quando comecei a fazer este trabalho e que passei a usá-lo: o "cair na pose". Você literalmente cai nela, pois no momento em que o corpo em segundos materializa a intenção que foi primeiramente sentida, depois pensada racionalmente e então tudo isso refletido num movimento que se congela durante alguns minutos, existe um coeficiente de idealização versus realização que tem que ser considerado. È difícil calculá-lo com precisão e uma vez que você "cai" errado na pose, ou seja, quando se erra neste cálculo, você terá de suportar a dor durante o tempo pré-estabelecido. E como é difícil e sofrido esse erro. Nele você aprende a lidar com o insuportável, com seus limites de resistência física, resistência psicológica e de resistência à dor. Beiramos muitas vezes ao masoquismo por que para lidar com a dor um grande aliado é o prazer. Então é pelo prazer, mórbido às vezes, que conseguimos suportar a dor de uma pose "mal caída". E isso vicia, acreditem. Então na contramão deste masoquismo todo é preciso também um exercício mental para não nos tornarmos masoquistas de carteirinha. Uma pose errada é sempre um degrau para o autoconhecimento. Você sente, pensa, calcula, cai na pose, vê que errou, começa a contagem regressiva para a dor e para o sofrimento, vive esta dor por minutos (que variam de 2 a 40 minutos muitas vezes), se questiona onde é que errou, lida com a frustação de não poder corrigir este erro e ainda com a tensão que na maioria das vezes não deve transparecer ao artista. Particularmente tento usar tudo isso a meu favor, mesmo a sensação do desespero da dor, que reflete em meu olhar, acabo utilizando-a como proposição. Acaba sendo uma proposição consequente de expressão, mas é sempre muito interessante ver os resultados nos desenhos. Às vezes uma pose que era para ser simples, serena, expressar tranquilidade e repouso se transforma numa verdadeira expressão do horror, o que para bons artistas torna-se um prato cheio!

Todos sempre perguntam no que penso enquanto estou ali imóvel e nu. Bom, difícil responder com precisão, mas penso em tudo o que todos pensam e principalmente não pensam no dia-a-dia. Além das coisas pertinentes às proposições das poses, penso em Deus, se minha fé Nele e em mim mesmo aumentou ou diminuiu, na casa que deixei desarrumada, na louça que terei de lavar, nos problemas que preciso resolver, lembro-me de coisas que me esqueci de fazer, penso na família, nas ligações que não tive tempo de realizar, nas contas que tenho que pagar, nos sonhos que foram realizados e nos novos sonhos que procuro fomentar, nas paixões que se transformaram em amizades ou no amor que sempre procuro, penso na roupa que quero comprar, no filme que quero ver, decoro meus textos de teatro mentalmente, escrevo mentalmente minhas poesias, visualizo espetáculos completos que ainda quero fazer, monto peças e personagens todos em pensamento, penso em sexo, em posições não só boas para o desenho mas é claro, também boas para uma boa transa, penso inúmeras vezes no que sou hoje e comparo com o que queria ser quando criança, lembro que no dia seguinte terei de ir ao médico, ou que no outro dia poderei realizar meu sonho de fazer cinema, penso nas brigas que já tive com amores passados, no ciúme que aprendi a controlar ou no "vai tomar no cú" que tinha de ter dito e não disse ou no "puta-que-o-pariu" que direi mais tarde, penso também no quanto sou feliz sendo quem sou, na gratidão que sinto pelos pais e irmãos que tenho, penso também de repente no quanto um artista ou outro é lindo, e no quanto um artista ou outro é bom, jamais penso fazer amor com nenhum deles, pelo menos no exercício do trabalho, penso na árvore que ficaria linda num bonsai, nunca penso em ereção, e se por acaso este pensamento começa a querer aparecer lembro de minha avó no banheiro fazendo cocô ou do dia em que vomitei na cara de um amigo sem querer. Enfim, são infinitos pensamentos no exercício desta profissão!

Já o exercício do autoconhecimento requer observação e concentração, e o trabalho do modelo vivo necessita do silêncio, ou pelo menos de um ambiente propício à meditação. Quaisquer ruídos e conversas paralelas dificultam a boa realização do trabalho, consequentemente num bom resultado do exercício de conhecer a si próprio. Essa concentração se inicia desde o momento precedente ao trabalho, com alongamentos e exercícios de uma respiração tranquila e vai até o final da sessão, normalmente de duas horas. E no meu caso, pode ser auxiliada com música, que normalmente proponho em meus trabalhos. E é nos concentrando que começamos a entender melhor quem somos e por quê e para quê estamos aqui. A concentração é ferramenta necessária para a Arte e exercitá-la me ajuda muito na vida profissional e particular. Para o ator a concentração é primordial e depois que comecei a trabalhar como modelo vivo, há quatro anos, senti que melhorei como ator. Me sinto mais maduro em cena, mais inteiro nas personagens, mais calmo e verdadeiro. E na vida e na arte também me vejo mais centrado. Claro que tudo isso é muito bom e maravilhoso, mas a evolução é uma escada sem fim e quanto mais a alimentamos mais precisamos evoluir e é sempre um movimento de mão única, ou seja, o conhecimento é primo. Uma vez que você sabe realmente sobre algo não há como deixar de saber; pode-se esquecer sim, mas o registro já está em seu cérebro, na memória de sua pele, de seu corpo e para resgatá-la basta acessá-la. Isso também é maravilhoso, mas o que quero levantar aqui é o fato de que todo este autoconhecimento muitas vezes te faz não optar viver coisas por já saber no que vão dar. E aí é que mora o erro. Porque cada momento, cada situação vivida, são diferentes um do outro. Acredito que não devemos nunca generalizar os resultados do que aprendemos. Como o "cair nas poses" que narrei atrás. Portanto, neste caso o autoconhecimento não é sempre necessário para que possamos nos permitir viver. Acho que até o autoconhecimento precisa ser equilibrado e esse equilíbrio talvez se dê com a idade, à medida que envelhecemos.

Ser um modelo vivo não é apenas despir-se e se colocar imóvel numa posição, antes de tudo é permitir-se envelhecer de forma equilibrada, expondo não apenas seu sexo e seu corpo, belo, atlético, perfeito ou feio, obeso e imperfeito, mas também expondo seus erros, suas buscas, seu interno belo e terrível, suas incertezas e certezas, seu lado mais obscuro e velado pela moral. Assim, por isso, nunca ficamos "pelados", mas sim ficamos nus, sem as roupas e vestimentas da sociedade, da moral, dos exemplos copiados, das referências tomadas como próprias, porém nunca questionadas.  Estar nu diante de muitos é estar propício a uma evolução sempre infinita, baseada na coragem necessária para se viver a vida.

Juliano Hollivier - São Paulo