sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Os POR QUÊS da Nudez

(Fotos de Lucas Carduz)
Algo que as vítimas do tabu da nudez talvez desconheçam, são os por quês da nudez ao fazer artístico. Durante quase 13 anos trabalhando pude perceber diversas razões para que esta profissão aconteça com o ser humano nu. Relaciono aqui algumas delas:

1. Razões técnicas: expor o corpo sem roupas possibilita ao modelo a manutenção das pausas de forma mais leve, sem a pressão das costuras, zíperes, botões, dobras e caimentos que costumam marcar e machucar a pele quando em muito tempo numa mesma posição. Ao artista observador, olhar para o modelo nu permite que este compreenda o tamanho e as proporções anatômicas reais, sem ser orientado pelo corte da roupa que o modelo vestiria, ou então, enganado pelos caimentos e desenhos do traje. Também permite que o artista acompanhe as linhas do corpo (internas e externas) e a volumetria real sem a interrupção das linhas e volume da veste. A luz e sombreamento sobre a pele nua promovem um entendimento pleno sobre suas ações e possíveis representações bidimensionais ou tridimensionais, ao passo que se o modelo vivo estivesse vestido, o volume por luz e sombreamento se daria de forma filtrada e diferente. É preciso entender a ação da luz refletindo diretamente na pele, para que depois se entenda sua projeção sobre os tecidos.

2. Razões filosóficas: o nu deverá representar a total disponibilidade do modelo vivo que se propõe à observação[1]. A nudez promove um enfrentamento deste modelo com seus medos e traumas, também promove o mesmo enfrentamento naqueles que observam o modelo vivo nu. Pode promover o respeito às diferenças relacionadas à anatomia, singularidade e comportamentos humanos.


3. Razões históricas: na Grécia antiga (séc V) o nu se evidenciou como uma forma de arte, não como assunto de arte. O corpo humano passou a ser estudado e observado nu pelos artistas que objetivavam esculpi-lo, representando seus ideais de beleza e aperfeiçoamento, denotando a característica grega de unidade entre corpo e espírito e da crença nos deuses, como era em sua essência a forma humana da época.

O corpo humano, considerado na arte como um núcleo autônomo, é rico em associações; e quando considerado esteticamente, elas não se perdem do todo. [...] O nu pode ser o ponto de partida para a expressão de uma experiência muito mais vasta e civilizada: é a nossa própria imagem, e permite-nos evocar tudo aquilo que temos em mente fazer de nós próprios. Acima de tudo, o tratamento estético do corpo humano pode assumir uma das formas mais expressivas do nosso desejo de perpetuação. (CLARK, 1956).

Na arte renascentista, com Rafael, Michelangelo, Alberti e Pisanello, o trabalho de estudo da figura humana continuou sendo feito a partir de modelos vivos nus, ainda que as obras finais fossem entregues com as figuras vestidas, as vestimentas eram normalmente postas depois do estudo feito a partir dos modelos vivos nus. As fases que se seguiram continuavam desta mesma maneira, se estendendo até os dias de hoje. Algo que era praticado desde o séc.V, devido ao aproveitamento educacional da observação de corpos nus, provavelmente não necessitaria mudar por questões morais ou religiosas, considerando que o entendimento da figura humana e a sua representação se prejudicariam se feitos a partir de pessoas vestidas.



 4. Razões morais: é importante entender a diferença entre o nu e o pelado, sendo o primeiro uma atitude, um estado e o segundo, um ocorrência. O estado é relacionado na arte pela disponibilidade do modelo em se permitir ser observado para o estudo artístico, a ocorrência é relacionada pela sociedade (o mais comum) como algo incorreto se oferecido sem propósito ou conteúdo. O nu contém uma intenção reflexiva da nudez a respeito dos hábitos impostos por padrões sociais.



 5. Razões políticas: o corpo é considerado por muitos um potencial icônico de lutas políticas, seja em intenções pela paz, direitos humanos, racismos, generofobias ou em quaisquer interesses sociais de divergências. Há grupos de pessoas espalhadas pelo mundo que usam a nudez em protestos político-sociais, como o FEMEM (ativistas feministas). Por representar o que o ser humano é em sua essência, como vem ao mundo e o quanto é modificado por ele, a nudez tem um potente referencial balizador. É capaz de mobilizar centenas de pessoas para o acúmulo de atenção sobre quaisquer mensagens que se pretenda passar. Na arte, a nudez representa, dentre diversas outras coisas, também o lado oposicionista político. As relações entre a política e a nudez artística se estabelecem desde as representações de deuses gregos (séc.V), quando seguiam proporções idealizadas e com referencial de perfeição.



6. Razões religiosas: por mais que a religião, principalmente cristã, tentasse esconder as partes sexuais da figura humana na Idade Média, foi através delas que conseguiram abarcar o repertório imagético de milhares de fiéis em todo o mundo. Coberta por tecidos ou apenas sugestionada, a nudez principalmente feminina nas obras artísticas religiosas é um grande foco de atenção. Segundo o filósofo contemporâneo Giorgio Agambem (2009, pg.73)[2] a nudez, na nossa cultura, é inseparável de uma marca teológica. De acordo com a narrativa do Génesis, Adão e Eva só se dão conta estarem nus após o pecado que cometem. Embora não estivessem vestidos com traje algum, segundo os teólogos, antes do pecado eles se vestiam de um traje glorioso, um traje de graça e de luz, que é perdido após o pecado. Sendo assim, por motivos que confrontem aos religiosos ou por reafirmações essencialmente humanas da nudez, as razões que levam o trabalho da observação da figura humana acontecer com os modelos vivos nus estão intimamente ligadas às relações religiosas da sociedade.



 7. Razões antropológicas: no que se refere ao estudo mais aprofundado do ser humano, através da comparação incontestável que a exposição da nudez promove, podemos ver no outro o que há e o que não há em nós. A complexa nudez que se observa do modelo vivo pode ser a nudez que falta àqueles que o observam. O despojamento que ela representa é o despojamento que a arte pretende (ou possa pretender) refletir no espectador.













[1] Mesmo que haja modelos fechados em um ideal de representação de fenótipos.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2010.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

ARTE ERÓTICA OU PORNOGRÁFICA?

(Imagens não creditadas: artista plástico e modelo vivo não divulgados. Levantando informações de autoria.)


Recentemente fui solicitado por um amigo venezuelano a opinar sobre o que ele chamou de arte erótica e de como seria para o modelo vivo se expor em trabalhos que continham esta intenção. Enviou-me pelo celular fotos de aquarelas de figuras humanas masculinas representando o desejo sexual, libido aflorada e ejaculações para ilustrar o que chamava de erotismo.

Observei por vários minutos as imagens antes de começar a gravar uma resposta espontânea. Pensei primeiro sobre os rótulos que damos às coisas e as consequências de categorizarmos tanto a arte. Me questionei se o que entendia por erótico era mesmo aquilo que olhava nas aquarelas. A resposta mais rápida foi a palavra pornografia, que surgiu como um luminoso vermelho piscante. Na sequência comecei a gravar o que chamaria de “áudio inaudível” via whatsapp: quase 15 minutos de falação, que eu mesmo talvez não teria paciência para ouvir se estivesse na correria do dia a dia. Depois de enviá-lo, demorei um dia para voltar a escutar tudo o que tinha dito. Como se fosse uma certificação ou validação de posicionamento sobre um assunto que há tantos anos faz parte de minha vida. Se não fosse a seriedade deste tema e sua relação com conceitos tão profundos de nossa existência, diria que nunca fui tão contraditório com aquela resposta.

Falamos de desejos, de absoluta entrega e exposições sem máscaras, de conexões com o outro quando falamos de libido, quando sentimos tesão. O desejo sexual e a sua consumação podem ser talvez um dos únicos momentos da existência em que o homem se despe totalmente da moral. Creio que é aí que mora o real motivo de tanta preocupação com o desejo sexual alheio, já que entregues, nos sentimos nas mãos do outro, completamente desprotegidos.


Na resposta comecei dizendo que o que ele chamava de arte erótica era pra mim arte pornográfica. Reconhecia a qualidade técnica das aquarelas e do contexto sexual presente nos trabalhos. Do alto de minha certeza, presunção até, discorri sobre mostrar ou não mostrar o sexo rígido nas aquarelas, enfatizando a dispersão da libido do observador de forma absolutamente tão direta. Contextualizei as diferenciações entre erótico e pornográfico, no meu entendimento, dizendo que o primeiro acontece quando o artista apenas sugere sensações de prazer sexual e de tantos outros prazeres e que o segundo é quando o artista mostra a excitação do sexo na sua totalidade.   Acrescentei que quando há a sugestão, dando ao observador não uma, mas inúmeras possibilidades de leitura isso tem pra mim mais valor cultural e artístico do que quando o artista nos dá apenas uma opção de entendimento. Quando olhamos para um desenho ou aquarela que nos faz sentir várias coisas diferentes, que despertam reflexões sobre nós mesmos e até sobre os outros, isso costuma ser para mim algo com mais conteúdo artístico. Isto não acontece quando o propósito do artista, através de sua obra, direciona a minha observação para um único caminho, o sexual neste caso.

Estendendo o assunto para o artista que expõe sua nudez, os modelos vivos, propósito maior deste texto, penso que se nos colocamos diante do(s) observador(es) também com este único intuito, o de despertar desejos sexuais, esta atitude limita o processo criativo de quem nos observa e também a nós mesmos enquanto posamos. A interpretação erótica e sexual da nudez é apenas UMA possibilidade. Existem diversos outros sentimentos e sensações que o nu é capaz de despertar, senão, de conduzir à reflexão sobre alguns deles. Segundo Kenneth Clark (1956), renomado historiador britânico de arte e autor do livro THE NUDE, A STUDY IN IDEAL FORM, o nu como gênero artístico personifica-se através de conceitos relacionados à Harmonia, Energia, Êxtase, Humildade e Piedade (pathos). Depois de mais de 10 anos trabalhando com a exposição da nudez constatei que são inúmeros os conceitos, sentimentos e emoções que ela pode atingir, modificar, provocar, transformar e fazer nascer. O que mais gosto de explicitar são os sentimentos decorrentes do respeito às singularidades humanas, promovidos pela comunicação consciente e abrangente do corpo nu. Já tive a oportunidade de ver grandes transformações humanitárias e muito positivas em pessoas com quem trabalhei. Respeito por diferenças sociais, raciais, anatômicas, de gênero, de orientações sexuais, religiosas e outras mais. Também vivenciei situações em que a exposição de meu corpo nu auxiliou na aceitação e respeito do próprio corpo dos que me observavam.  Acredito que o trabalho consciente e abrangente (artística e corporalmente falando) foi responsável por estas transformações. E sempre que transformamos para melhor os conceitos do outro, também nos modificamos. A transcendência é pra mim um dos principais motivos da Arte.


(Egon Schiele, sketch book, 1916)
Não podemos deixar de considerar que categorizações como estas sobre o erotismo e a pornografia na arte se modificam com o decorrer do tempo, da história. Se fluidificam de acordo com às diferenciações de época, cultura, região, temperatura média, religião e tantos outros fatores. O artista Egon Schiele (1890-1918, Áustria), por exemplo, pintor expressionista hoje mundialmente reconhecido, possui trabalhos extremamente eróticos e outros pornográficos, segundo as considerações austríacas da época que o levaram inclusive para a prisão. Foi condenado por imoralidade, pornografia e corrupção de menores.




(Suzanne Valadon no quadro de Toulouse-Lautrec, 1892)




Suzanne Valadon (1867-1938, Paris), modelo vivo e pintora pós-impressionista que teve uma participação marcante na cena artística parisiense, foi acrobata circense e tornou-se parte integrante das obras de Renoir e Toulouse-Lautrec. Iniciou-se na pintura sob a orientação de Degas e foi a primeira mulher a fazer parte da Sociedade Nacional de Belas Artes. Muitos de seus trabalhos como modelo vivo foram considerados como pornografia na época, o que para nós hoje, podem ser apenas entendidos como eróticos. 

Ton of Finland (1920-1991, Finlândia), artista conhecido por seu trabalho homoerótico, esperou 30 anos para ter sua arte reconhecida. Seu trabalho possui uma representação de detalhes e perfeição de luz e sombreamento, e podemos perceber a proposta política e artística dentro da pornografia.


(Ton of Finland, “Desenhos Sujos, 1950)

O polêmico fotógrafo alemão Wolfgang Tillmans (1968), premiado pela Tate Gallery, é considerado hoje talvez o mais famoso da história da fotografia por revistas importantes sobre fotografia e arte. Assim, também existe muita pornografia na fotografia reconhecida artisticamente pelo mundo e que estão expostas em grandes museus e importantes galerias. Neste caso, sem limites o fotógrafo expõe com sucesso e de maneira diferente tudo aquilo que vivencia e fotografa. A forma como conta as histórias e conecta as imagens de diferentes mundos o faz ser considerado um gênio.
(Registro de Daniela Petrucci em exposição de Wolfgang Tillmans, Tate Gallery, Londres 2017)

Inevitavelmente, ao despirmo-nos diante de uma plateia, entramos em contato com os conceitos alheios sobre o nu. Questionamentos advindos de julgamentos sobre o que é arte ou moralidade costumam preencher salas de aula com alunos iniciantes na observação do modelo vivo. É possível que tais dúvidas também habitem a mente do público em geral, quando este observa pinturas, desenhos, esculturas, fotografias, filmes, performances e espetáculos teatrais feitos a partir do corpo desnudo. Talvez, para rechear nossas considerações sobre “falsa arte e más morais” (CLARK, 1964), o correto seja nos questionarmos por que a representação da libido e do sexo na arte ainda sofre categorizações negativas e causa repúdios tão radicais. As respostas poderão nos levar a reflexões não só sobre desejos escondidos, mas também aos não assumidos, às ações consequentes de possíveis omissões, ao conhecimento das instituições beneficiadas com esta atitude e às consequências negativas decorrentes.  É inegável a força da apresentação do corpo nu. Porém, dizer que um trabalho artístico é equivocado e se trata de falsa arte, é um tanto quanto presunçoso. Posso ter sido muito presunçoso ao dizer ao amigo que as imagens que me enviou pelo celular não se tratavam de arte erótica, consequentemente o mesmo para o trabalho realizado pelo modelo que posou para tais aquarelas. Aliás, dizer o que é e o que não é arte é algo realmente muito arriscado. É necessário algum tempo de reflexão, de considerações, de observação, de repertório artístico e intelectual, de vivência em um meio onde a arte se exprime. Acima de tudo, entender a arte como tal é, no meu entendimento, ser transformado por ela.



Portanto, se alguém se transforma ao ver corpos expelindo sêmen, modelos vivos posando com o sexo excitado, quem sou eu para dizer que isto não se trata de arte? Sou apenas um profissional que preza pela manutenção e reconhecimento do meu ofício, como profissão e como algo que agrega o conhecimento das pessoas. Como tal, não posso deixar de considerar o terreno marginalizado e periférico que abriga esta condução da nudez pornográfica. Não vemos com frequência, conteúdos muito elaborados dentro deste tema, o que não é o caso destas imagens. Mas, seria no mínimo hipócrita de minha parte e da parte de todo modelo vivo profissional não enxergar que são necessárias inúmeras ressignificações do contexto sexual na arte, para realizá-la com alguma acuidade.

Resta-nos saber escolher em que terreno podemos conduzir a aceitação, o conhecimento e a manutenção de nossa profissão. Se optarmos pela exposição pornográfica de nossos corpos, poderemos estar limitando os olhares sobre o que fazemos, conduzindo-os apenas à leitura sexual, como já disse. Ainda que o trabalho tenha este único propósito, precisamos olhar para as consequências negativas disso, que afetam uma profissão que tanto se extingue como algo artístico e que necessita de estudo para ser realizada. Hoje em dia e quase sempre, qualquer pessoa sem o mínimo conhecimento corporal e artístico pode tirar a roupa e permanecer parada para o registro artístico. Porém, o trabalho do modelo vivo vai além desta falta de roupas e imobilidade ilusória. E se pretendemos ser modelos que interagem na criação artística é inevitável que consideremos o todo (a si próprio, ao outro e ao ambiente em que vivemos) e que estudemos para adquirir participação neste processo. Ampliar nossa consciência de corpo e o entendimento sobre a abrangência da exposição da nudez é um diferencial que, possivelmente, nos aproxima da grandeza deste trabalho e das transformações que somos capazes de impulsionar. Limitar a leitura do corpo nu é agir contra suas motivações e possibilidades.

Após ouvir a mensagem enviada a meu amigo, senti vontade de escrever a respeito e de também refletir um pouco mais sobre. Propostas artísticas não merecem se limitar, elas se exteriorizam através do artista para ganhar o mundo metafórico e transformador. O erotismo nos desperta para as buscas e conceituações. A pornografia nos traz a certeza de nossos desejos sexuais. Então, por que responder com certezas anseios tão profundos do homem? Seria a arte feita de certezas?