segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

ARTE ERÓTICA OU PORNOGRÁFICA?

(Imagens não creditadas: artista plástico e modelo vivo não divulgados. Levantando informações de autoria.)


Recentemente fui solicitado por um amigo venezuelano a opinar sobre o que ele chamou de arte erótica e de como seria para o modelo vivo se expor em trabalhos que continham esta intenção. Enviou-me pelo celular fotos de aquarelas de figuras humanas masculinas representando o desejo sexual, libido aflorada e ejaculações para ilustrar o que chamava de erotismo.

Observei por vários minutos as imagens antes de começar a gravar uma resposta espontânea. Pensei primeiro sobre os rótulos que damos às coisas e as consequências de categorizarmos tanto a arte. Me questionei se o que entendia por erótico era mesmo aquilo que olhava nas aquarelas. A resposta mais rápida foi a palavra pornografia, que surgiu como um luminoso vermelho piscante. Na sequência comecei a gravar o que chamaria de “áudio inaudível” via whatsapp: quase 15 minutos de falação, que eu mesmo talvez não teria paciência para ouvir se estivesse na correria do dia a dia. Depois de enviá-lo, demorei um dia para voltar a escutar tudo o que tinha dito. Como se fosse uma certificação ou validação de posicionamento sobre um assunto que há tantos anos faz parte de minha vida. Se não fosse a seriedade deste tema e sua relação com conceitos tão profundos de nossa existência, diria que nunca fui tão contraditório com aquela resposta.

Falamos de desejos, de absoluta entrega e exposições sem máscaras, de conexões com o outro quando falamos de libido, quando sentimos tesão. O desejo sexual e a sua consumação podem ser talvez um dos únicos momentos da existência em que o homem se despe totalmente da moral. Creio que é aí que mora o real motivo de tanta preocupação com o desejo sexual alheio, já que entregues, nos sentimos nas mãos do outro, completamente desprotegidos.


Na resposta comecei dizendo que o que ele chamava de arte erótica era pra mim arte pornográfica. Reconhecia a qualidade técnica das aquarelas e do contexto sexual presente nos trabalhos. Do alto de minha certeza, presunção até, discorri sobre mostrar ou não mostrar o sexo rígido nas aquarelas, enfatizando a dispersão da libido do observador de forma absolutamente tão direta. Contextualizei as diferenciações entre erótico e pornográfico, no meu entendimento, dizendo que o primeiro acontece quando o artista apenas sugere sensações de prazer sexual e de tantos outros prazeres e que o segundo é quando o artista mostra a excitação do sexo na sua totalidade.   Acrescentei que quando há a sugestão, dando ao observador não uma, mas inúmeras possibilidades de leitura isso tem pra mim mais valor cultural e artístico do que quando o artista nos dá apenas uma opção de entendimento. Quando olhamos para um desenho ou aquarela que nos faz sentir várias coisas diferentes, que despertam reflexões sobre nós mesmos e até sobre os outros, isso costuma ser para mim algo com mais conteúdo artístico. Isto não acontece quando o propósito do artista, através de sua obra, direciona a minha observação para um único caminho, o sexual neste caso.

Estendendo o assunto para o artista que expõe sua nudez, os modelos vivos, propósito maior deste texto, penso que se nos colocamos diante do(s) observador(es) também com este único intuito, o de despertar desejos sexuais, esta atitude limita o processo criativo de quem nos observa e também a nós mesmos enquanto posamos. A interpretação erótica e sexual da nudez é apenas UMA possibilidade. Existem diversos outros sentimentos e sensações que o nu é capaz de despertar, senão, de conduzir à reflexão sobre alguns deles. Segundo Kenneth Clark (1956), renomado historiador britânico de arte e autor do livro THE NUDE, A STUDY IN IDEAL FORM, o nu como gênero artístico personifica-se através de conceitos relacionados à Harmonia, Energia, Êxtase, Humildade e Piedade (pathos). Depois de mais de 10 anos trabalhando com a exposição da nudez constatei que são inúmeros os conceitos, sentimentos e emoções que ela pode atingir, modificar, provocar, transformar e fazer nascer. O que mais gosto de explicitar são os sentimentos decorrentes do respeito às singularidades humanas, promovidos pela comunicação consciente e abrangente do corpo nu. Já tive a oportunidade de ver grandes transformações humanitárias e muito positivas em pessoas com quem trabalhei. Respeito por diferenças sociais, raciais, anatômicas, de gênero, de orientações sexuais, religiosas e outras mais. Também vivenciei situações em que a exposição de meu corpo nu auxiliou na aceitação e respeito do próprio corpo dos que me observavam.  Acredito que o trabalho consciente e abrangente (artística e corporalmente falando) foi responsável por estas transformações. E sempre que transformamos para melhor os conceitos do outro, também nos modificamos. A transcendência é pra mim um dos principais motivos da Arte.


(Egon Schiele, sketch book, 1916)
Não podemos deixar de considerar que categorizações como estas sobre o erotismo e a pornografia na arte se modificam com o decorrer do tempo, da história. Se fluidificam de acordo com às diferenciações de época, cultura, região, temperatura média, religião e tantos outros fatores. O artista Egon Schiele (1890-1918, Áustria), por exemplo, pintor expressionista hoje mundialmente reconhecido, possui trabalhos extremamente eróticos e outros pornográficos, segundo as considerações austríacas da época que o levaram inclusive para a prisão. Foi condenado por imoralidade, pornografia e corrupção de menores.




(Suzanne Valadon no quadro de Toulouse-Lautrec, 1892)




Suzanne Valadon (1867-1938, Paris), modelo vivo e pintora pós-impressionista que teve uma participação marcante na cena artística parisiense, foi acrobata circense e tornou-se parte integrante das obras de Renoir e Toulouse-Lautrec. Iniciou-se na pintura sob a orientação de Degas e foi a primeira mulher a fazer parte da Sociedade Nacional de Belas Artes. Muitos de seus trabalhos como modelo vivo foram considerados como pornografia na época, o que para nós hoje, podem ser apenas entendidos como eróticos. 

Ton of Finland (1920-1991, Finlândia), artista conhecido por seu trabalho homoerótico, esperou 30 anos para ter sua arte reconhecida. Seu trabalho possui uma representação de detalhes e perfeição de luz e sombreamento, e podemos perceber a proposta política e artística dentro da pornografia.


(Ton of Finland, “Desenhos Sujos, 1950)

O polêmico fotógrafo alemão Wolfgang Tillmans (1968), premiado pela Tate Gallery, é considerado hoje talvez o mais famoso da história da fotografia por revistas importantes sobre fotografia e arte. Assim, também existe muita pornografia na fotografia reconhecida artisticamente pelo mundo e que estão expostas em grandes museus e importantes galerias. Neste caso, sem limites o fotógrafo expõe com sucesso e de maneira diferente tudo aquilo que vivencia e fotografa. A forma como conta as histórias e conecta as imagens de diferentes mundos o faz ser considerado um gênio.
(Registro de Daniela Petrucci em exposição de Wolfgang Tillmans, Tate Gallery, Londres 2017)

Inevitavelmente, ao despirmo-nos diante de uma plateia, entramos em contato com os conceitos alheios sobre o nu. Questionamentos advindos de julgamentos sobre o que é arte ou moralidade costumam preencher salas de aula com alunos iniciantes na observação do modelo vivo. É possível que tais dúvidas também habitem a mente do público em geral, quando este observa pinturas, desenhos, esculturas, fotografias, filmes, performances e espetáculos teatrais feitos a partir do corpo desnudo. Talvez, para rechear nossas considerações sobre “falsa arte e más morais” (CLARK, 1964), o correto seja nos questionarmos por que a representação da libido e do sexo na arte ainda sofre categorizações negativas e causa repúdios tão radicais. As respostas poderão nos levar a reflexões não só sobre desejos escondidos, mas também aos não assumidos, às ações consequentes de possíveis omissões, ao conhecimento das instituições beneficiadas com esta atitude e às consequências negativas decorrentes.  É inegável a força da apresentação do corpo nu. Porém, dizer que um trabalho artístico é equivocado e se trata de falsa arte, é um tanto quanto presunçoso. Posso ter sido muito presunçoso ao dizer ao amigo que as imagens que me enviou pelo celular não se tratavam de arte erótica, consequentemente o mesmo para o trabalho realizado pelo modelo que posou para tais aquarelas. Aliás, dizer o que é e o que não é arte é algo realmente muito arriscado. É necessário algum tempo de reflexão, de considerações, de observação, de repertório artístico e intelectual, de vivência em um meio onde a arte se exprime. Acima de tudo, entender a arte como tal é, no meu entendimento, ser transformado por ela.



Portanto, se alguém se transforma ao ver corpos expelindo sêmen, modelos vivos posando com o sexo excitado, quem sou eu para dizer que isto não se trata de arte? Sou apenas um profissional que preza pela manutenção e reconhecimento do meu ofício, como profissão e como algo que agrega o conhecimento das pessoas. Como tal, não posso deixar de considerar o terreno marginalizado e periférico que abriga esta condução da nudez pornográfica. Não vemos com frequência, conteúdos muito elaborados dentro deste tema, o que não é o caso destas imagens. Mas, seria no mínimo hipócrita de minha parte e da parte de todo modelo vivo profissional não enxergar que são necessárias inúmeras ressignificações do contexto sexual na arte, para realizá-la com alguma acuidade.

Resta-nos saber escolher em que terreno podemos conduzir a aceitação, o conhecimento e a manutenção de nossa profissão. Se optarmos pela exposição pornográfica de nossos corpos, poderemos estar limitando os olhares sobre o que fazemos, conduzindo-os apenas à leitura sexual, como já disse. Ainda que o trabalho tenha este único propósito, precisamos olhar para as consequências negativas disso, que afetam uma profissão que tanto se extingue como algo artístico e que necessita de estudo para ser realizada. Hoje em dia e quase sempre, qualquer pessoa sem o mínimo conhecimento corporal e artístico pode tirar a roupa e permanecer parada para o registro artístico. Porém, o trabalho do modelo vivo vai além desta falta de roupas e imobilidade ilusória. E se pretendemos ser modelos que interagem na criação artística é inevitável que consideremos o todo (a si próprio, ao outro e ao ambiente em que vivemos) e que estudemos para adquirir participação neste processo. Ampliar nossa consciência de corpo e o entendimento sobre a abrangência da exposição da nudez é um diferencial que, possivelmente, nos aproxima da grandeza deste trabalho e das transformações que somos capazes de impulsionar. Limitar a leitura do corpo nu é agir contra suas motivações e possibilidades.

Após ouvir a mensagem enviada a meu amigo, senti vontade de escrever a respeito e de também refletir um pouco mais sobre. Propostas artísticas não merecem se limitar, elas se exteriorizam através do artista para ganhar o mundo metafórico e transformador. O erotismo nos desperta para as buscas e conceituações. A pornografia nos traz a certeza de nossos desejos sexuais. Então, por que responder com certezas anseios tão profundos do homem? Seria a arte feita de certezas?