Autoconhecimento.
Para quê? Será mesmo tão necessário?
Conhecer tão bem a si mesmo pode levá-lo a um mundo de
perguntas respondidas, e isso acaba sendo chato. Você se prepara racionalmente
para as coisas da vida e penso que talvez isso possa tirar a vivência real e
intensa dos momentos.
Quando
em horas e mais horas imóvel na mesma posição sou "objeto" de estudo.
Analisado minuciosamente centímetro por centímetro, dos pés à cabeça. Uma
análise feita pelo artista do meu corpo no espaço e de minhas interferências
neste espaço. Sendo assim, o que penso, o que sinto, como vejo e como me
expresso em determinada pose, reflete no que o artista capta e registra em seu trabalho.
Permanecer imóvel e nu diante de pessoas é sem dúvida um exercício de autoconhecimento.
Ser um modelo vivo não é apenas despir-se e se
colocar imóvel numa posição, antes de tudo é permitir-se envelhecer de forma
equilibrada, expondo não apenas seu sexo e seu corpo, belo, atlético, perfeito
ou feio, obeso e imperfeito, mas também expondo seus erros, suas buscas, seu
interno belo e terrível, suas incertezas e certezas, seu lado mais obscuro e
velado pela moral. Assim, por isso, nunca ficamos "pelados", mas sim
ficamos nus, sem as roupas e vestimentas da sociedade, da moral, dos exemplos
copiados, das referências tomadas como próprias, porém nunca questionadas. Estar nu diante de muitos é estar propício a
uma evolução sempre infinita, baseada na coragem necessária para se viver a vida.
Momentos longos onde me vejo fora de mim. Como se saísse do
próprio corpo, sentasse a alguns metros de distância e pusesse a me observar.
Começo vendo os pés, onde estão, como estão, se estão limpos ou se não me
esqueci de cortar as unhas, se estão contraídos ou relaxados. Vejo os vasos
dilatados, veias saltadas que saem nas laterais, olho para eles e penso que são
a base de tudo. Isso me faz refletir se estou "plantado" por inteiro
no chão e se não estou, no mesmo momento, digo a mim mesmo: " - Trate de se apoiar direito na
próxima pose Juliano". O que aconteceria se a pose fosse outra, onde
os pés estivessem no ar? É óbvio que a raiz seria outra, mas o sentimento e o
pensamento e fisiologia do corpo seriam os mesmos.
Alí sentado me olhando vejo os olhos. Para onde olham, o que
veem, se estão brilhando, se estão cansados ou foscos. Se piscam muito tento
contar quantas vezes piscam até ouvir que a pose acabou. Observo o quanto
consigo manter o olhar vivo no ponto escolhido e vejo o quanto esse olhar diz
tudo: como penso, como sinto, o que quero e para onde vou na próxima pose. Num
instante penso se os artistas percebem isso; sim ou não isso não me incomoda
nem interfere nos meus pensamentos e poses. Se vejo meus olhos foscos,
interiorizados, automaticamente começo a pensar no "por que" estou
assim, e isso me faz viajar num processo de interiorização, em perguntas que
normalmente não seriam respondidas mas alí, tendo o tempo como aliado, consigo
respondê-las a quase todas. Mas é claro que não se deve pensar que tenho tudo
resolvido em mim, ou que não sofro com as dúvidas naturais de alguém com 32
anos. Quem dera! Se vejo meus olhos brilhando, expressando felicidade,
transmito através de todo meu corpo a energia e a vibração de uma felicidade
que contagia, tenho certeza, a todos. A felicidade também é facilmente "desenhável".
Da observação dos olhos abro o plano para o corpo todo. Vejo
se a estética dele condiz com o que pretendo expressar na pose. Se a posição
dos braços, mãos, tronco, cabeça estão na mesma vibração do que propus quando
"caí" naquela posição. Os segundos que separam as poses são
suficientes para a proposição da próxima pose. Não faço, geralmente, um roteiro
e mesmo que o fizesse o "aqui-agora" é que determina o trabalho e a
execução dele. Portanto, lido quase que totalmente com o improviso do momento,
com a ação-reação do movimento, com a resposta do corpo às proposições da
mente. Interessante o termo que ouvi quando comecei a fazer este trabalho e que
passei a usá-lo: o "cair na pose". Você literalmente cai nela, pois
no momento em que o corpo em segundos materializa a intenção que foi
primeiramente sentida, depois pensada racionalmente e então tudo isso refletido
num movimento que se congela durante alguns minutos, existe um coeficiente de
idealização versus realização que tem que ser considerado. È difícil calculá-lo
com precisão e uma vez que você "cai" errado na pose, ou seja, quando
se erra neste cálculo, você terá de suportar a dor durante o tempo
pré-estabelecido. E como é difícil e sofrido esse erro. Nele você aprende a
lidar com o insuportável, com seus limites de resistência física, resistência
psicológica e de resistência à dor. Beiramos muitas vezes ao masoquismo por que
para lidar com a dor um grande aliado é o prazer. Então é pelo prazer, mórbido
às vezes, que conseguimos suportar a dor de uma pose "mal caída". E
isso vicia, acreditem. Então na contramão deste masoquismo todo é preciso
também um exercício mental para não nos tornarmos masoquistas de carteirinha.
Uma pose errada é sempre um degrau para o autoconhecimento. Você sente, pensa,
calcula, cai na pose, vê que errou, começa a contagem regressiva para a dor e
para o sofrimento, vive esta dor por minutos (que variam de 2 a 40 minutos
muitas vezes), se questiona onde é que errou, lida com a frustação de não poder
corrigir este erro e ainda com a tensão que na maioria das vezes não deve transparecer
ao artista. Particularmente tento usar tudo isso a meu favor, mesmo a sensação
do desespero da dor, que reflete em meu olhar, acabo utilizando-a como
proposição. Acaba sendo uma proposição consequente de expressão, mas é sempre
muito interessante ver os resultados nos desenhos. Às vezes uma pose que era
para ser simples, serena, expressar tranquilidade e repouso se transforma numa
verdadeira expressão do horror, o que para bons artistas torna-se um prato
cheio!
Todos sempre perguntam no que penso enquanto estou ali
imóvel e nu. Bom, difícil responder com precisão, mas penso em tudo o que todos
pensam e principalmente não pensam no dia-a-dia. Além das coisas pertinentes às
proposições das poses, penso em Deus, se minha fé Nele e em mim mesmo aumentou
ou diminuiu, na casa que deixei desarrumada, na louça que terei de lavar, nos
problemas que preciso resolver, lembro-me de coisas que me esqueci de fazer,
penso na família, nas ligações que não tive tempo de realizar, nas contas que
tenho que pagar, nos sonhos que foram realizados e nos novos sonhos que procuro
fomentar, nas paixões que se transformaram em amizades ou no amor que sempre
procuro, penso na roupa que quero comprar, no filme que quero ver, decoro meus
textos de teatro mentalmente, escrevo mentalmente minhas poesias, visualizo
espetáculos completos que ainda quero fazer, monto peças e personagens todos em
pensamento, penso em sexo, em posições não só boas para o desenho mas é claro,
também boas para uma boa transa, penso inúmeras vezes no que sou hoje e comparo
com o que queria ser quando criança, lembro que no dia seguinte terei de ir ao
médico, ou que no outro dia poderei realizar meu sonho de fazer cinema, penso
nas brigas que já tive com amores passados, no ciúme que aprendi a controlar ou
no "vai tomar no cú" que tinha de ter dito e não disse ou no
"puta-que-o-pariu" que direi mais tarde, penso também no quanto sou
feliz sendo quem sou, na gratidão que sinto pelos pais e irmãos que tenho,
penso também de repente no quanto um artista ou outro é lindo, e no quanto um
artista ou outro é bom, jamais penso fazer amor com nenhum deles, pelo menos no
exercício do trabalho, penso na árvore que ficaria linda num bonsai, nunca
penso em ereção, e se por acaso este pensamento começa a querer aparecer lembro
de minha avó no banheiro fazendo cocô ou do dia em que vomitei na cara de um
amigo sem querer. Enfim, são infinitos pensamentos no exercício desta
profissão!
Já o exercício do autoconhecimento requer observação e
concentração, e o trabalho do modelo vivo necessita do silêncio, ou pelo menos
de um ambiente propício à meditação. Quaisquer ruídos e conversas paralelas
dificultam a boa realização do trabalho, consequentemente num bom resultado do
exercício de conhecer a si próprio. Essa concentração se inicia desde o momento
precedente ao trabalho, com alongamentos e exercícios de uma respiração
tranquila e vai até o final da sessão, normalmente de duas horas. E no meu
caso, pode ser auxiliada com música, que normalmente proponho em meus
trabalhos. E é nos concentrando que começamos a entender melhor quem somos e
por quê e para quê estamos aqui. A concentração é ferramenta necessária para a
Arte e exercitá-la me ajuda muito na vida profissional e particular. Para o
ator a concentração é primordial e depois que comecei a trabalhar como modelo
vivo, há quatro anos, senti que melhorei como ator. Me sinto mais maduro em
cena, mais inteiro nas personagens, mais calmo e verdadeiro. E na vida e na
arte também me vejo mais centrado. Claro que tudo isso é muito bom e
maravilhoso, mas a evolução é uma escada sem fim e quanto mais a alimentamos
mais precisamos evoluir e é sempre um movimento de mão única, ou seja, o
conhecimento é primo. Uma vez que você sabe realmente sobre algo não há como
deixar de saber; pode-se esquecer sim, mas o registro já está em seu cérebro,
na memória de sua pele, de seu corpo e para resgatá-la basta acessá-la. Isso
também é maravilhoso, mas o que quero levantar aqui é o fato de que todo este autoconhecimento
muitas vezes te faz não optar viver coisas por já saber no que vão dar. E aí é
que mora o erro. Porque cada momento, cada situação vivida, são diferentes um
do outro. Acredito que não devemos nunca generalizar os resultados do que
aprendemos. Como o "cair nas poses" que narrei atrás. Portanto, neste
caso o autoconhecimento não é sempre necessário para que possamos nos permitir
viver. Acho que até o autoconhecimento precisa ser equilibrado e esse
equilíbrio talvez se dê com a idade, à medida que envelhecemos.
Juliano Hollivier - São Paulo
CARA EU ADORO SEU TRABALHO ,ELE INSPIRA ,ELE NOS LIVRA DOS TABUS SOBRE UMA NUDEZ DEPRAVADA E NOS FAZ VIAJAR PELO UNIVERSO DA ANATOMIA HUMANA ONDE A UNICA COISA QUE NOS IRA MARAVILHAR E A NOSSA ADMIRAÇAO DE COMO SOMOS LINDOS E PODEMOS SER AINDA MAIS SE ABANDONARMOS O PRECONCEITO EM GERAL , MEUS PARABENSSSSSS
ResponderExcluirIvam, muito obrigado pelo seu comentário. Fico feliz que tenha gostado. Farei deste um lugar de reflexões de si! Acompanhe! Abraço!
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