quarta-feira, 25 de junho de 2014

Fadado ao Término?

Tenho notado nos últimos anos que nosso trabalho vem diminuindo lentamente. Vejo as escolas de desenho, os ateliês particulares e as universidades de artes plásticas, arquitetura, fotografia, design e moda, nos contratando cada vez menos em suas aulas. Temos participado, ano a ano, de forma mais rarefeita no cenário educacional da arte. Sobre a importância de nossa participação como modelos vivos na educação e ensino artísticos, creio que preciso publicar um texto dedicado a este assunto, porém agora me devo ater somente ao fato de que estamos trabalhando cada vez menos, o que me instiga a escrever a respeito para levantar questionamentos sobre os motivos desta baixa. E não serei hipócrita em dizer que apenas a educação artística e o próprio fazer artístico estão perdendo qualidade, mas também tenho que dizer que o pouco trabalho que acontece, quando acontece, vejo sendo feito “às coxas”.

Há uma diminuição notável das oportunidades de trabalho para o modelo vivo nos dias de hoje. Muitas questões enchem minha cabeça:  O que está deixando de existir? O interesse pela arte? Não acredito, pois vejo todos os anos novas turmas cheias de alunos abarrotando as faculdades públicas e privadas; vejo também abarrotadas as oficinas gratuitas de desenho com modelo vivo. Falta de verba nas instituições, para oferecerem mais qualidade ao ensino? Também não, pois as mensalidades estão sempre cada vez mais astronômicas e, repetindo, sempre mais e mais alunos ingressando os cursos. Falta de conhecimento dos proponentes, coordenadores, diretores, professores e reitores dos cursos de arte, no que se refere à importância da observação da figura humana nas aulas de desenho? Talvez.

Vamos aos fatos. Em 2009, 2010 e 2011 cheguei a trabalhar como modelo vivo, por exemplo, numa universidade particular de São Paulo, de três a quatro vezes por semana durante todo o ano. Éramos em média oito modelos que assinávamos a grade mensal de aulas práticas nesta faculdade. Requisitavam-nos para posar nas aulas dos cursos de arquitetura, artes plásticas e moda através de uma distribuição prévia feita pelos professores, que nos contratavam sempre com muita antecedência, devido a pouca quantidade de profissionais. Não queriam “correr o risco” de não nos terem em suas aulas, caso fôssemos chamados por outras universidades. Existia mais oferta de trabalho do que pessoas trabalhando na área. Em 2014, até a data de hoje, trabalhei nesta mesma universidade por apenas três vezes. E assim foi com demais colegas que, também como eu, desempenhavam um trabalho assíduo na instituição.

Nos anos de 2010, 11 e 12, também exercia meu ofício em uma universidade pública como contratado sempre por quatro meses no primeiro semestre e quatro meses no segundo, com total máximo de horas/aula permitidas dentro da instituição. Em 2013 a prestação de serviços se reduziu para apenas o segundo semestre e em 2014, já soube que acontecerá por apenas quinze dias e não mais por quatro meses. Noutra faculdade particular de Moda em São Paulo, já fui chamado para posar nos anos de 2011 e 2012 em aulas fixas que aconteciam duas vezes por semana durante o ano todo e que hoje se resumiram a apenas uma única aula optativa em todo o ano letivo. Estas aulas todas consideravam participação, frequência, valiam nota e ao final dos períodos aconteciam provas e avaliações. Os alunos que não aprendiam a desenhar a figura humana repetiam o ano. Hoje em dia, as poucas aulas que restam, estão se tornando “optativas”.


Participei de 2009 a 2013 de um grande evento de desenho e fotografia do corpo num renomado museu de arte de São Paulo e acabo de receber a mensagem negativa da continuidade do programa para este ano. O que aconteceu?  O que está acontecendo com nossas aulas tão importantes da observação do corpo e das infinitas proposições que oferecemos através dele?

Creio verdadeiramente que é um misto de coisas. Não se trata só do não entendimento de nossa importância para o estudo, daqueles que propõem os cursos nas faculdades, os “estrategistas” da educação que muitas vezes visam formar “curadores de arte” e não artistas, ou então reduzem ao máximo o trabalho manual dos estudantes a fim de conter custos e aumentarem seus lucros. Não se trata apenas do desconhecimento sobre o que fazemos nós, modelos vivos, em suas instituições de ensino em cursos como os de artes plásticas, arquitetura, fotografia, design e moda, não é só isso. As justificativas dadas são sempre as mais óbvias, como diminuição de budget (?), menor participação dos alunos (?) e novas diretrizes do “moderno” ensino de arte (!!! Talvez a única verdadeira!!!).

Considerando que o gasto de uma instituição de ensino com seu material humano (professores, coordenadores e demais recursos envolvidos, incluindo nós modelos) é planejado anual ou semestralmente e, determinada a necessidade da existência das aulas de observação, este valor é certamente repassado às mensalidades finais pagas pelos alunos, e no caso das públicas, coberto pelas verbas estaduais/federais de ensino resultantes de nossos impostos, o motivo financeiro não se justifica.

Sobre a questão da participação do aluno, diminuir a quantidade de aulas ou a existência delas por que eles não conseguem acompanhá-las é realmente um assunto crítico, pois não se pode comprometer a qualidade do ensino e consequente incapacitação de profissionais por que uma determinada quantia de pessoas não está apta a acompanhar as aulas. Não é essa a função do ensino? A de ensiná-las e prepará-las? Se todos já soubessem fazer, não seria preciso aprender!
Que moradias estaremos habitando futuramente, por exemplo, se nossos futuros arquitetos não souberem compreender a máxima do corpo humano, representando-a de forma coerente, proporcional e coesa com o que precisamos?

Que tipos de cadeiras ou sofás, outro exemplo, estarão comprometendo nossa postura e saúde enquanto sentarmos por aí nos móveis futuramente projetados por estes novos designers que sequer tiveram uma aula de observação da figura humana, para poder entender sua estrutura e criar objetos que sejam condizentes com a realidade do corpo?
Quais outros padrões de beleza serão replicados para massificar a vestimenta das pessoas, se os futuros estilistas de moda não souberem mais desenhar o corpo, pois não tiveram uma aula sequer de desenho conosco? Que roupas estarão criando? Para vestir quem? Seus modelos predeterminados pelas regras da moda? Que tamanhos de vestimentas saberão construir? Os dos padrões P, M, G?? Como criarão “roupas sustentáveis” se não pararam um dia sequer para observar com atenção o seu principal cliente: o ser humano? Sem falar nas decorrentes consequências da replicação de padrões que sequer imaginamos, como por exemplo, os transtornos alimentares e cirúrgicos que muitas mulheres sofrem simplesmente por não “se adequarem” aos atuais padrões de tamanhos replicados na moda.

Claro que tudo isso é uma exaltação de consequências generalizadas, mas são consequências de um ensino de arte desqualificado. Também não quero aqui estacar a bandeira “viva modelo vivo” por que não é brincadeira este assunto, mas quero apenas que as pessoas que ainda estiverem lendo este texto se atentem para a importância de nosso ofício e promovam e cobrem das instituições a existência de aulas de observação com modelos vivos profissionais.

Voltando às justificativas comumente dadas, talvez a única que se adeque à realidade é a das diretrizes novas do ensino da Arte. Vê-se hoje em dia menos “mão na massa”, menos aulas práticas, menos gente pendurada nas salas de aula fazendo arte e muito mais pessoas debruçadas nos computadores, adquirindo conceitos para a produção de uma arte apenas conceitual. Desta forma, como caminha, é só arte conceitual que conseguirão fazer. Não sei sinceramente o que é pior, risos, se sentar na tal cadeira do futuro fodendo minha coluna ou então ter de visitar virtualmente, provavelmente mal acomodado num sofá daqueles, as exposições de arte conceitual. Não é tão difícil prever.


Se o intuito dessas novas estratégias é o de “fabricar” artistas que só pensam, e não realizam, seus conceitos, o que teremos como matéria? O que teremos como obra? Curadoria artística não existe sem artistas e muito menos sem suas obras. Vamos consumir o que da arte? Replicações constantes? Releituras de rereleituras? Socorro!!!! Talvez seja preciso, que nós consumidores do ensino, exijamos e pratiquemos a tal qualidade para não abandonarmos o barco que aportamos quando decidimos ser artistas.

Aproveitando a metáfora do barco, assumo aqui minha parcela de culpa nesta diminuição de oportunidades de trabalho, não como modelo, pois acredito na minha capacitação artística e no trabalho que desenvolvo, nem como Juliano, mas unicamente por fazer parte de uma pequena (quase microscópica) parcela de pessoas que expõe a própria nudez para que tenhamos artistas mais capazes. Se não temos mais tantas oportunidades de trabalho assim como antigamente, nem tão antigamente assim, é também culpa nossa.

Culpa dos modelos que infelizmente acham que realmente é só ficarem pelados e parados “ganhando seu troco”, que não são capazes de propor nada além de sua peladice, que não promovem a mediação entre o que pensam, o que sentem, o que acham do mundo, o que esperam dele e a arte que os alunos/artistas estão ali para fazer.
Culpa de nós modelos que não chegamos no horário marcado, ou por que o trânsito engarrafou ou por que o ônibus quebrou, culpa de nós modelos que atrasamos uma aula e deixamos cinquenta, as vezes sessenta, pessoas nos esperando (já vi acontecer de 380 alunos esperarem ao mesmo tempo o modelo atrasado chegar), culpa de nós modelos que chegamos “esbaforidos” da correria do dia a dia para posar nas aulas sem o menor preparo do que dizer com o corpo ou do que propor aos observadores.

Se a quantidade de aulas vem diminuindo, é também culpa nossa que não fizemos até hoje dessas aulas as melhores aulas da vida destes alunos. Culpa nossa por não praticar o respeito para merecermos ser respeitados, culpa nossa por chegarmos sempre com a mesma cara cansada e sem nenhuma proposta de inovação à aula, por simplesmente tirarmos a roupa e nos apoiarmos na imobilidade, vestindo-nos do “eu tô fazendo a minha parte e basta”. Culpa nossa por não insistir no uso de uma música qualquer, por exemplo, para melhorar a aula e fazer com que os alunos se desprendam mais facilmente dos medos da nudez e foquem na observação. Culpa nossa por não estudarmos diferentes formas de dizer as coisas com nosso corpo, e sempre nos colocarmos naquela postura “meia boca” do contraposto “davinciano”.

É culpa nossa por não trabalharmos de forma atualizada e em sintonia com a realidade de hoje, para propormos algumas quebras e melhoras. É nossa culpa não conseguirmos fazer com que as aulas de modelo vivo sejam tão desejadas que não se possa pensar num curso de arte qualquer sem a existência delas.

É por isso que escrevo para que, não só os alunos e estudantes de arte, mas também os professores e principalmente os próprios modelos que se propõem ao trabalho possam refletir sobre COMO estamos fazendo este trabalho.
Ele tem sido diferente a cada dia? Ele tem sido inesquecível a cada momento? Ele tem modificado a forma de ver das pessoas? Se a resposta for não para qualquer uma destas questões, então ele não está sendo feito direito. E se assim for, mude de postura ou de profissão, para que possamos recuperar o exercício da importância deste ofício.
 *** Fotos das aulas costumeiras e ainda existentes, ministradas sempre com tanta maestria pelo professor Feres Khoury, no curso de Arquitetura da USP.




terça-feira, 17 de junho de 2014

Pelados

Nus e pelados, qual a diferença?
Pelado adj (particípio do verbo pelar): A que se tirou a pele ou o pelo, sem pelo; pobre, sem dinheiro.
Nu  adj (lat nudu): Despido; descoberto; desfolhado; desguarnecido; desarmado; sincero, não vestido.

Self Naked / Pelado
Costumo dizer que ficamos pelados em casa, no banho, no sexo, na sauna, às vezes em praias, outras em piscinas. Costumo dizer que meus amigos ficam pelados, meus parentes ficam pelados, os alunos ficam pelados, os professores também ficam pelados. Nós modelos vivos nunca ficamos pelados enquanto nos apresentamos. Ficamos nus.

“Estar pelado” é uma expressão que carrega pré-conceitos e significados que não correspondem com o ato de posar nu. Depois de muito tempo mal usada, a palavra pelado se tornou pejorativa e dá um contexto menor ao despir. Estar pelado é estar passivo, é estar sem algo, é estar numa posição erroneamente cheia de julgamentos e alvo de determinações de valor (menor, errado, vergonhoso, sexual, generalizado, descuidado, miserável, necessitado). Definitivamente a Arte não é feita com pessoas peladas, quando se observa o modelo.

Foto: Danton Nunes
Foto: Danton Nunes
Estar nu coincide com o ofício, pois nele nos descobrimos de padrões para propormos identificações reais, novas e humanas, para propormos questionamentos e ressignificações de tudo o que é hermético, fechado, vestido e padronizado.
Ficamos nus para que a observação recaia sobre o corpo e para que as infinitas consequências dela contaminem o espectador, sem a interferência das relações que a palavra “pelado” provoca.

Estar nu, enquanto Modelos Vivos, é ser ativo e propositor de mediações e alterações. É estar sempre com algo a ser dito, a ser mostrado através do corpo. É colocar-se não em uma, mas em infinitas posições de julgamentos, porém os julgamentos que se referem aos arbitramentos, às decisões, às opiniões, às apreciações e deliberações.

As determinações que acontecem, são na sua grande maioria de altíssimo valor cultural, artístico e estético, abrangentes, sempre respeitosas, plenas do erotismo e da paixão que a arte necessita, particulares e singulares, compostas por um cuidado quase obsessivo, repletas de riquezas intelectuais, visuais e cognitivas e sempre muito abastadas e recheadas de conteúdo. Para realizar a arte de ser um modelo nu observado, é necessário estar com todas as peles presentes, como disse uma amiga outro dia, “mais vivas e presentes do que nunca”, por isso, jamais pelados. Dúvidas? Revejam as imagens e encontrem as diferenças.

E você? Como fica? Nós Modelos Vivos ficamos NUS.

Foto: Danton Nunes

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Ganhando Um Troco

Foto: Eugenio Lorainev
Outro dia, enquanto posava e curtia minha “imobilidade ilusória” (falarei sobre isso mais pra frente), meus ouvidos captaram um comentário ao longe. Uaawww, adoro quando isso acontece! Risos, acho mesmo que a ilusão da imobilidade toma conta das pessoas enquanto nos observam, pois algumas delas realmente acham que sequer ouvimos. Bom, voltando ao comentário que bateu latejante em meu ombro, que estava ali a observar a sala toda e passava agora a expressar seu espanto com o que ouvia, ficou nítido o quanto nosso corpo é influenciado pelo espaço e pelo que ocorre nele.
Um rapaz, de aproximadamente 25 anos, dizia ao professor que se interessava pela ideia de posar “pelado” para ganhar um troco, já que a sua dívida na lanchonete da faculdade estava aumentando. Isso, isso mesmo, riam e riam muito se puder, pois eu aqui agora escrevendo e relembrando o que tinha ouvido, também estou a morrer de rir. Enfim, para piorar ainda mais a situação da estátua surda, o professor o responde dizendo que seria primeiro preciso ele experimentar o trabalho sem cobrar nada, em algum ateliê particular de pintura, para depois então passar a ganhar uns trocos por ele.
Vamos por partes: O interesse pela atividade é muito comum, primeiramente por suscitar um ganho fácil de muito dinheiro e também por parecer que qualquer pessoa é capaz de realizá-la, sem ter de fazer nada. Para este tipo de pensar já respondo que não, não se ganha muito dinheiro com esta profissão. Infelizmente ela ainda não é vista como tal, como deveria, e muito menos valorizada por isso. Estima-se, ainda arcaicamente, que tirar a roupa e se mostrar para as pessoas é algo que  se faz por que não se faz outra coisa. Sendo assim, na “falta de” paga-se o quanto puder para aquele que “nada tem a fazer”. Este conceito, infelizmente, ainda reina. E claro, pela mudança dele é que também trabalho.

O pagamento pela exposição do corpo é muito relativo. Se o modelo realmente só está ali para mostrar sua pele, também acho que deva ganhar o equivalente à sua intenção, mas se há uma proposta um pouco mais inteira, o valor que é feito, é feito sempre com a determinante de um juízo relativo (que erroneamente depende de tempo, quantidade e/ou dificuldade de poses, quantidade de alunos ou artistas presentes, lugar onde se está acontecendo a sessão, entre vários outros). Tudo numa tentativa de justificar a existência do modelo naquela situação. Há ainda os que pensam “mas ele não está a fazer nada, então por que pagar tanto?”. Por isso e por tantos outros motivos, ainda se ganha pouco por um trabalho desses. E, como vemos no exemplo em que meu ombro ouviu, há pessoas que o fazem de graça, para se iniciarem na “ganhação de trocos” e, sendo assim, os clientes podem sempre se valer de iniciantes para não terem que pagar nada, ou então escolherem modelos que o fazem por tão pouco, pois realmente não farão nada, já que não sabem o que fazer.

Digo que erroneamente depende de alguns fatores por que não cobro por mostrar o ombro assim ou assado, ou por mostrar o bumbum nu ou vestido, ou ainda por mostrar-me nu em pé, sentado ou apoiado sofrendo mais, ou menos, pela exposição. Não. Cobro é pela exposição e coparticipação de tudo o que meu corpo e eu propomos numa performance, para que as pessoas observem e aprendam/exercitem algo com isso. Fatores como tempo, local e propósito, muitas vezes podem e devem influenciar o custo, porém não são determinantes, já que o que deve ser considerada é a possibilidade de se observar, tão atentamente, um ser humano que está ali completamente disponível com tudo o que é e tem para ser observado. 
Foto: Eugenio Lorainev

Vejo, nestes anos todos, inúmeras pessoas se aventurarem no trabalho peladístico. Ou por quererem ganhar o tal troco, ou por estarem sem fazer nada e não se importarem com sua peladice, ou pelo fetiche da nudez própria aos voyeristas, ou ainda por acharem tão exótico tal trabalho. Porém também vejo, nestes mesmos anos, estas pessoas não passarem de suas segundas ou terceiras sessões de trabalho. E isso, é claro, por que atenderam seu propósito em poucas tentativas, e também por que não se sustentam como profissionais e os próprios clientes, mais dia menos dia, percebem que não estão contribuindo muito, aí então, trocam o biotipo.

Experimentar este trabalho, sem cobrar nada, para adquirir alguma experiência e então depois disso passar a ganhar, é uma prática que desvaloriza o ofício de quem o exerce com profissionalismo. Deprecia o trabalho de quem se prepara tanto, física e intelectualmente, para exercê-lo. Perpetua o errado conceito sobre a nudez artística. Empobrece os desenhos e resultados artísticos advindos de sua observação. Tira oportunidades de trabalhos daqueles que são profissionais no que fazem. Generaliza o despreparo e descontinuísmo destes modelos aventureiros, prejudicando a credibilidade do próprio ofício. Bloqueiam as possibilidades de valorização dos cachês pagos a profissionais. E aqueles que “cobram menos”, no início de suas tentativas, desconsideram a ética e depreciam também o trabalho realizado por profissionais.

É necessário que, quando há o interesse por esta atividade e que não seja superficial, a pessoa entenda que precisará ter o que expressar com sua nudez e que ela não seja o propósito do trabalho. A nudez é o que transporta suas intenções, seus propósitos, sua expressão, seu conteúdo. Então a pessoa há que buscar este conteúdo, estudá-lo para propor interações, se informar e se preparar, testando ou exercitando a prática em casa, sozinha, diante do espelho que seja. E depois de muito preparo, encontrar alguém que tope o desafio de observá-la. Aos aventureiros de plantão: pensem que profissionais perdem com suas tentativas sem fundamento, que o próprio ofício e a Arte se prejudicam. E, acreditem, desta forma não conseguirão quitar por muito tempo suas dívidas em lanchonetes.
Foto: Eugenio Lorainev
Foto: Eugenio Lorainev
De volta à pose, o ombro que a princípio compunha uma imagem de altruísmo proposta por mim, passou a ser lido por olhos influenciados pela falta de conteúdo do comentário infeliz do aluno. E consequentemente, o aproveitamento daquela observação foi prejudicado. Minha pose passou a gerar interpretações da compaixão, ao invés da solidariedade proposta no início. É por isso que é tão importante a compreensão do que, como e para que fazemos as coisas. E definitivamente não fazemos este trabalho para compor nosso orçamento, “ganhando um troco” enquanto não temos outra coisa para fazer, como muitos pensam, pois se assim é feito, assim é muito mal feito e não perdurará!
Foto: Eugenio Lorainev

terça-feira, 3 de junho de 2014

Este Corpo de Novo?

Foto: Gabriela Cruz
Após quase 8 anos trabalhando como Modelo Vivo e tendo notado inúmeras desistências do exercício da observação, além das incontáveis vezes em que fui naturalmente trocado por outro modelo em trabalhos costumeiros, ou por cobrarem menos pelas sessões ou por clamarem os artistas sempre por “novos corpos” para desenharem, meus dedos coçam para escrever e publicar este texto. Sei que é necessário e muito comum ser premissa nas escolas, ateliês e universidades de artes a diversidade de tipos físicos, quando oferecem cursos de desenho, fotografia, escultura e/ou pintura. Entende-se, de uma maneira superficial, que ter uma infinidade de corpos e biotipos distintos para o ensino do desenho e das artes que utilizam a figura humana, é uma forma de ampliar o conhecimento e referências daqueles que aprendem. Observar corpos diferentes, como por exemplo, de pessoas magras ou gordas, atléticas ou não, baixas ou altas, loiras ou morenas, negras ou amarelas, homem ou mulher, etc, é sem dúvida uma proposição de diversidade no ensino do desenho (leia-se também “pintura, escultura e fotografia”). Esta multiplicidade é realmente necessária e concordo com ela. Afinal, se a proposta é a de ensinar a anatomia humana aos futuros artistas, a diversificação dos corpos fará com que eles aprendam a desenhar pessoas diferentes. Porém, meu trabalho vai um pouco além desta proposição. Quem já me desenhou ou fotografou e me acompanha, sabe do que estou dizendo. Trabalho em direção a um novo conceito de exposição do corpo, e é por isso que prezo pelo entendimento da palavra “modelo” e me utilizo sempre de coisas pouco comuns e uma linguagem inovadora enquanto me apresento. Faço isso por que entendo que, nos dias de hoje, quando a “molecada”  já não nasce sabendo as proporções do corpo ela abre a internet para estudar em casa esta anatomia, através de sites que mostram figuras humanas em posições 3D, e por que se somente for este o intuito a mover professores e mestres da arte a ensinarem/praticarem em aulas com modelo vivo, tanto a minha quanto as suas profissões estarão fadadas a terminar.  Observar a figura humana somente pela anatomia que ela tem a ensinar é pouco. A meu ver insuficiente demais, por que somos fontes incessantes de expressão e isto é o que faz o exercício da observação ser tão necessário na Arte.
Foto: Ramon Cavalcanti
Estava outro dia posando numa aula e uma aluna, que me desenha desde Janeiro deste ano no curso de Moda da universidade, me perguntou o que tinha mudado em meu corpo, pois percebia algo diferente nele, naquele dia. Respondi a ela que tudo era diferente, e assim vinha sendo em todas as 15 aulas anteriores em que me observava. Então chegamos à conclusão de que era o seu olhar que tinha algo diferente: a capacidade de identificar as expressões infinitamente diversas que meu corpo (ou qualquer corpo) é capaz de produzir.
Entendo que o exercício do aprendizado da anatomia é importante, mas a Arte não se limita a isso, por favor! Ele é apenas o primeiro degrau de um ensinamento infinito. Por isso não me aguento, risos, quando alguém deixa escapar “– Este corpo de novo?”, em aulas ou sessões de desenho. É então quando tal comentário me instiga a fazer tudo de forma tão diferente sempre. Mostrando a todos o quanto somos repetidamente distintos a cada minuto que passa. Um corpo nunca se repete, ainda que o Modelo seja o menos criativo e profissional possível. Mesmo que o Modelo não proponha coisas e linguagens diferentes com seu corpo, ele nunca será o mesmo. Pois o tempo, minuto a minuto, interfere em seu estado, consequentemente em seu corpo, consequentemente na observação dele, consequentemente no entendimento e visualização do artista, consequentemente no resultado registrado (desenho, pintura, escultura ou fotografia). Penso então que de mim depende evidenciar isto nos lugares em que trabalho. Mas é claro que muitos não entendem ou não percebem a diferença. Partem logo para a constatação, na maioria das vezes equivocada, da “matéria já aprendida com aquele corpo”, ou então, para a troca do modelo por uma "maior diversidade". Hummm... Não há o que se repita no corpo desnudo, e está aí outro motivo da nudez neste ofício. O artista (aluno ou professor) que não é capaz de compreender esta irrepetibilidade, há que se exercitar com os exercícios de autorretrato.
Foto: Gabriela Cruz
O ator que repete, por exemplo, a mesma cena ou texto um milhão de vezes, se necessário, jamais o fará da mesma forma em nenhuma delas. Pois seu corpo é a “máquina” repetidora e ainda que suas intenções sejam sempre as mesmas, sua “máquina” não é uma máquina. É sim um sistema codificado com suas emoções, estados, relações com o ambiente em que está, pessoas que o observam, naturalmente influenciado por situações inesperadas e alteradoras. É um corpo vivo que informa e transporta a informação. Por isso é irrepetível. Sendo assim, não há o que se ver novamente num corpo observado. Só há o que se descobrir diferente nele.
Por estudar tanto as possibilidades expressivas do corpo que tenho, e sendo ator e estudante eterno das artes dramáticas, tento e procuro sempre fazer com ele o que eu realmente quero. Posso não conseguir às vezes, mas através do peso, da força, do direcionamento, da contextualização cênica, do uso de minhas articulações e repertório cognitivo, estou sempre propondo personagens aos olhos dos mais atentos, e posso até me fazer passar por velhos, obesos, altos, magros, mulheres, bichos e monstros, se necessário for. Mas o que realmente importa não são as personagens que meu corpo tentará representar, mas a forma que usarei para representá-los. É o ‘como’ e não ‘o quê’, e é isto o que faz o artista crescer com a sua observação. Quando digo que trabalho com um novo conceito de exposição do corpo, refiro-me à exposição de tudo aquilo que se mostra visível através de um conteúdo, formado pelas experiências e vida deste corpo, pela criatividade, coragem, desempenho e história dele. Me utilizo muitas vezes de linguagens cênicas, de iluminação característica, de estímulos musicais cuidadosamente criados e/ou selecionados, de textos literários e poéticos, na maioria das vezes por mim mesmo escritos, para que a soma de tudo isso possa proporcionar infinitas interpretações e entendimentos às pessoas que observam, desenham ou fotografam minha Arte. Também para que a arte delas seja, quem sabe, tão plena de amor quanto a minha e para que o resultado desta troca possa fazer algum sentido para todos nós. Este é o propósito do trabalho que realizo, e por isso contemporâneo, pois até então só se observavam corpos passivos de observação e não proponentes dela. E aí? Vamos repetir?
Foto: Eva Bella