domingo, 10 de dezembro de 2017

A Profissão Modelo Vivo (I)

Depois de uma grande pausa nas publicações, por motivos relacionados ao falecimento de Cris Ferrantini (o Blog é repleto de imagens nossas e fruto de um projeto que tínhamos em comum) e também por minha total imersão na realização do curso de pós-graduação em Técnica Klauss Vianna na PUC-SP, retomo a divulgação e o compartilhamento de assuntos pertinentes à arte da exposição artística da nudez. Agora, com conteúdos inovados, referências e fundamentações teóricas, procurarei trazer textos que promovam reflexões que contribuam não só com a manutenção desta profissão milenar, mas também com a qualidade da exposição do nu e de sua participação no processo artístico criativo. Espero que gostem!



Foto: Giulia Sperandio
Necessito falar da profissão, legalmente ainda não reconhecida, mas que é realizada seriamente por poucos e que me sustenta há mais de 10 anos. Esta atividade é feita por pessoas e motivos diversos. Há quem se expõe pelo amor à arte e entendimento do seu papel e importância à humanidade. Há quem se expõe pelo tempo ocioso em que se encontra em sua profissão, pelo dinheiro, complemento de orçamento ou desemprego. Há quem se expõe para testar a coragem, para adquirir um desprendimento do corpo e da inibição. Há também aqueles que expõem sua nudez pelo prazer da exibição ligada ao sexo ou voyeurismo. Sem dúvida há quem deseja apenas conhecer o trabalho, tão mitificado pelo tabu da nudez e pela própria história da arte, já que pouco se conhece e se tem registro sobre o trabalho dos modelos observados pelos grandes artistas. Há os próprios artistas, normalmente desenhistas, pintores e escultores, que o fazem pelo conhecimento de causa para provável consequente melhora em seu desempenho na observação do nu. Assim como, há os que se expõem como profissão escolhida e que é também pertencente às artes do corpo. Vemos posando neste ambiente artístico atores, bailarinos, músicos, artistas circenses, pintores, desenhistas, escultores, modelos fotográficos e de passarela, praticantes de yoga, pilates, fisioterapeutas, ginastas, executivos, profissionais do sexo, entre tantos outros.

A diversidade de formação, atuação e intenções que movem o indivíduo a praticar, ou ao menos, iniciar-se na prática de uma atividade tão importante quanto é a do modelo vivo, mostra que a pluralidade é parceira e necessária na realização da arte. Porém, tão necessário quanto, é o aperfeiçoamento deste ofício, que chamarei a partir de agora de profissão. Atualizá-la com um entendimento maior sobre corpo e sua participação no processo criativo do artista, contribui com a sua continuidade. Reverberar este entendimento para os artistas que nos observam, também. Trazer à tona as consequências para além dos frutos técnicos deste estudo é fundamental na instituição desta profissão, que tanto agrega à formação do artista. Atualizar e aperfeiçoar pode, quem sabe, também categorizá-la um dia como uma forma de arte.

Foto: Giulia Sperandio
Geralmente as sessões de observação de modelo vivo acontecem com o corpo do profissional ou iniciante colocado nu ao centro de uma roda de pessoas que se propõem a desenhá-lo, pintá-lo, esculpi-lo ou fotografá-lo. O modelo se coloca numa posição escolhida por ele ou, geralmente, pelos participantes e permanece em pausa enquanto os presentes realizam o registro artístico. As pausas variam de 30 segundos a 20, 30 ou até 40 minutos e as sessões costumam durar de 1 a 4 horas. Neste círculo o modelo posa usualmente de forma passiva, aparentemente imóvel e em silêncio, recebendo os olhares enquanto os demais artistas registram aquilo que conseguem expressar através de suas mídias e conhecimentos técnicos. A interação entre modelo e artistas se limita, na maioria das vezes, aos resultados obtidos através dos desenhos, pinturas, esculturas e fotografias. É um trabalho que costuma estar velado ao conhecimento somente das pessoas que participam da experiência, sendo segregado e muitas vezes escondido pelos próprios profissionais e pessoas que o realizam, sem o entendimento de sua potência e importância.

Faço um paralelo às palavras de Klauss Vianna¹, em relação à repetição da forma na dança, com a exposição do corpo do modelo vivo. Mais do que exibidores de formas anatômicas e proporções oriundas de comparações geométricas, podemos interferir na concepção de corpo daquele que nos investiga atentamente com os olhos. Compartilhamos não apenas nossos traços, espalhados pelas linhas vivas da matéria que nos compõe, mas inclusive nossas referências, história, repertório e intelecto. Além de observar em nós as características físicas, o artista pode também se valer de nossas expressões para adentrar níveis mais acentuados de seu estudo. E através do nu, esta busca maior de conhecimento pode se dar. Ele permite que o observador consiga acompanhar as linhas e volumes inerentes do corpo sem a interrupção de vestes, seguindo a sua linearidade e volumetria sem precisar supor ou imaginar como são as referidas partes, quando estão cobertas pelos tecidos. Isto propicia um desenho (ou demais resultados) mais próximo do que é visto, e mais distante do que costuma ser memorizado. Além disso, o contato visual com a realidade corpórea alheia, no instante da observação, costuma proporcionar também um enfrentamento de significados, questionamentos e comparações que podem contribuir com o estudo.

A dança não significa reproduzir apenas formas. A forma pura é fria, estática, repetitiva. Dançar é muito mais aventurar-se na grande viagem do movimento que é a vida. Nesse sentido, a forma pode comparar-se à morte e o movimento, à vida. (VIANNA, 2005:112)
Foto: Giulia Sperandio
Durante a minha trajetória pessoal como modelo vivo, pude perceber que muitas pessoas se transformam na observação do corpo nu. A observação da nudez com propósitos artísticos interfere no aprendizado artístico, nas ações e pensamentos que derivam deste ato, daqueles que observam e daquele que é observado. Tomado pelos questionamentos sobre o que contribui nesta transformação busquei compreendê-la em mim e naquilo que me faz expor o corpo, para então poder compartilhar este conhecimento de forma fundamentada em um estudo que considera o corpo não só como matéria ou aparato anatômico, mas como uma unidade entre corpo e mente.

É preciso reconhecer a importância da observação do corpo para práticas artísticas, mas através de conceitos que articulem as relações inerentes ao próprio corpo e deste com o ambiente e com o outro, considerando seu potencial de transformação.


Tão instigante quanto é o nu para a arte, pode ser o entendimento do corpo para os modelos vivos que servem de referência aos artistas e estudantes. Porém, quem são estas pessoas que oferecem seus corpos às aulas de arte? O quanto sabem da importância de sua participação neste processo de conhecimento e, principalmente, o quanto conhecem seu próprio corpo?

1.  Coreógrafo e pesquisador brasileiro.



Foto: Giulia Sperandio

Foto: Giulia Sperandio