terça-feira, 29 de julho de 2014

Nudez e Religião

Foto: Daniela Petrucci
Claro que não poderia deixar de abordar este assunto, já que quando proponho a observação da nudez, proponho a observação da nudez da alma. Mesmo não sendo mais tão polêmico, graças a Deus, por ser importante às religiões mantê-lo velado.

Em se tratando de alma, corpo é consequência. Quando me refiro à transparência necessária para a observação de nosso corpo, não falo somente da inexistência da roupa ou da quebra de paradigmas que o nu ocasiona, mas falo também da nudez de espírito que põe diante dos observadores todas as suas falhas, medos, descrenças, desejos e necessidades. Abre aos olhos mais atentos oportunidades para enxergar o quanto somos imperfeitos e o quanto necessitamos olharmos uns aos outros para aprendermos com isso. O resultado deste processo é transformador, tendo como ganhos a constatação da diversidade e o respeito a ela, e está nele a relação da nudez com a religião.

Foi importante para a Igreja relacionar a nudez ao pecado, pois assim conseguia velar a intenção política e econômica da sua existência. Deter às suas “mãos” o controle da vontade sexual dos fiéis era um facilitador, para terem sempre relações monogâmicas autorizadas pela instituição, pelo menos as relações oficiais. Porém, a meu ver, a nudez não promove somente as vontades sexuais, ela estimula a investigação de si mesmo e isso, sem a menor sombra de dúvidas, os religiosos chefes já sabiam. Ou seria um paradoxo termos tanta arte sacra repleta de imagens seminuas?
Foto: Daniela Petrucci

Não, não é. Além de controlar o desejo das pessoas, a religião quis também direcionar este desejo que lhes restava. E não mais o desejo sexual, mas o desejo de entender quem somos, por que somos e para que somos. Se direcionassem esta inquietação a um propósito Divino, teriam o benefício dos resultados que a nudez proporciona, através das obras litúrgicas.

Não estou aqui execrando esta manipulação, longe disso, ela é histórica e já aconteceu. Mas uma das faces também de meu trabalho é pôr em questionamento o real amor que você tem a Deus. Uawwww, risos, mas sim....quando você me olha nu, quero que pense também se tem um amor maior. Quero que questione, através da comparação, que Deus é este que está nos observando, enquanto me observa? Que credo é este que, na maioria das vezes, faz as pessoas achatarem um modelo único de verdade e existência, excluindo aqueles que fogem deste padrão ou aqueles que não se enquadram nele? Quero que entenda que somos cada um de um jeito e que tudo pode ser melhor se aprendermos a conviver as diferenças.

Amar a Deus é particular também, claro, e tenho minha religião e o amor a Ele. Porém não há como negar que a observação do homem e seus feitos conduzem a este amor maior. Conduz ao sentido da vida e à compreensão de que vivemos de uma forma mais feliz quando amamos as pessoas, a família, os amigos, o(a) namorado(a), os animais, a natureza e a quem tudo isso criou...mas quando amamos também as características que nos são distintas, neste universo todo. Por isso, observar o fruto desta criação é sem dúvida um caminho para a compreensão divina. Assim, religião e nudez convivem mesmo que veladamente.

Foto: Daniela Petrucci

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Imobilidade Ilusória

Foto: Lucas Marques
Após alguns anos de trabalho com a imobilidade pude entender algumas coisas que são tão importantes, a meu ver, para nós artistas e não artistas, que faço questão de compartilhá-las aqui no Blog.

Certa vez em aula, uma aluna reclamou ao professor que eu tinha me mexido e por isso seu desenho estava desproporcional (tenho que informar que somente o dela e não os de todo o resto da classe). Sim, claro, o que havia se mexido tinha sido apenas minha barriga, que se movia naturalmente a cada inspiração e expiração. Meu corpo permaneceu dentro das marcações por todos os 20 minutos cronometrados. E olha que eu procuro diminuir a intensidade de minha respiração enquanto poso além de controlar o piscar dos olhos. Porém, naquela situação, pensei: “mas que parte do ‘vivo’ do Modelo Vivo esta aluna não entendeu?”.
Foi então que decidi um dia escrever sobre isto.

Desenho de Filipe Rios

Todos sabem que ficamos horas parados em poses que são observadas e registradas pelos artistas plásticos, arquitetos e fotógrafos. Sabem também que, para que este registro seja o mais preciso possível, é necessário que nos mantenhamos completamente estáticos no espaço.

Esta grande pausa está relacionada à adequação do corpo ao espaço que, enquanto observando, o observador cria relações de direcionamento, estrutura, nivelamento, proporções, volume, luminosidade e sombreamento e principalmente de foco na expressão que o modelo propõe naquele exato momento, tempo e local da pose.
Tudo está relacionado com o ambiente físico, psicológico e intelectual dos que estão presentes numa sessão, e por isso, estritamente vinculado ao direcionamento imóvel do corpo em relação ao espaço.

Foto: Lucas Marques
Sempre digo que a pose é uma consequência de um movimento, uma rápida situação congelada do corpo que se move em direção a um objetivo. Os movimentos nos levam a algum lugar e são disparados por objetivos, sendo assim, mover-se é uma consequência de um estímulo.

No teatro, na dança ou na performance, ambientes em que a movimentação é criada e conduzida para a observação de um público, este movimento é interpretado de acordo com o repertório de quem o vê. Sofre, por consequência, juízo de valor e aceitação ou não das suas proposições de mensagens.

Pensando o corpo do Modelo Vivo, que permanece estático durante a observação das pessoas, como ficam as proposições de movimentação deste corpo? Como se encaixam os objetivos para o fazerem se mover? Como se adequam os lugares/público que deveriam receber este corpo que se movimenta em direção a eles, ou por eles? E como ficam os valores de juízo (agora não mais juízo de valores) quando o público observa este novo corpo?
Desenho de Rafael Moraes
Considerar efêmera a pose de um Modelo Vivo, como uma fração de segundo de um corpo em movimento, assim como também considerar da mesma forma o mover-se na vida (real ou artística), torna possível a identificação de pequenos e grandes gestos realizados na Arte e no dia a dia.
O corpo de hoje, artista ou não, se move com maior conhecimento dos universos que o contemplam. Move-se de uma maneira completamente mais habitada pelo seu propositor. Move-se considerando o corpo do outro, se adaptando aos movimentos do outro e se interferindo com ele, sendo naturalmente dependente de transformações e ressignificações. Os corpos que assim ainda não se movem, estão defasados.
Foto: Osíris Lambert

Há também o movimento biológico constante que este corpo sofre, com diferenciações do corpo desconexo e desinformado. Nele o movimento dos estímulos e sinapses nervosas, o movimento do sangue que percorre e alimenta suas estruturas, o movimento das emoções que alteram suas ações e tantos outros movimentos corporais biológicos, passam a acontecer de forma diferenciada, já que o conhecimento destas características físicas e somáticas dá a elas uma autonomia consciente e real de suas ações.
Quem, hoje dia, não tem consciência dos movimentos biológicos próprios? Com o “boom” do bem-estar saudável, das academias e exercícios físicos, da busca quase obsessiva pelo corpo ideal, quem não se informa sobre seu metabolismo corporal? Está aí outro benefício do nosso “oráculo virtual” Google. Ainda que este corpo continue se movimentando biologicamente nos momentos que independem de sua vontade, o conhecimento sobre eles exerce uma diferenciação.
Desenho de Gui Blanco
Um corpo que propõe constantemente novos discursos ativando mediações, como é o corpo de um Modelo Vivo, com certeza se move diferentemente no meio em que vive.

Seu movimento deixa de ser a consequência de um estímulo e passa a ser o próprio estímulo, que se move com pequenas pausas em direção a uma transformação, e não mais a um “lugar”.
No corpo não há o que se torne imóvel e sendo assim qualquer iniciativa de imobilidade, para a observação do espectador, se torna ilusória e também passível de alterações.
Foto: Lucas Marques

Para este corpo que é observado em pausas, onde a interferência dele sobre o universo é fundamental, o entendimento sobre imobilidade é altamente modificado. Nos dias atuais, sequer aqueles com problemas de mobilidade deixam de se mover. Mover-se é o objeto de busca da manutenção da vida.

Há sem dúvida a necessidade de pararmos muitas vezes para compreendermos e estudarmos coisas relacionadas ao viver, porém estas pausas já não são também mais as mesmas. Quando se para num determinado momento, a continuidade dos movimentos internos é cada vez mais intensa e verdadeira. E quando um artista, por exemplo, observa o corpo ilusoriamente imóvel de seu modelo como “objeto” de estudo, a ilusão causada de que este corpo está parado é determinante e estimulante na proposição de sua arte.
Ao meu entendimento, o corpo modelo observado pode estar num estado ilusoriamente imóvel de forma ativa, quando continua propondo mediações, e de forma passiva, quando ainda propondo mediações passa apenas a não demostrar suas alterações ao observador. No trabalho realizado pelo observado, quando parado e objeto de observação, a imobilidade não acontece.

Especificamente falando sobre o Modelo Vivo, que se coloca “imóvel” diante de um artista, o que está em movimento antes da pose alcançada é a sua mente, seu corpo, suas sensações e emoções, suas expressões, a energia reverberada por seu corpo no espaço e retornada a ele, além da própria observação da pessoa que espreita seu momento de “imobilidade” para então registrá-la através de sua mídia. Movem-se também as expectativas do artista sobre o corpo do modelo.
Desenho Filipe Rios

Quando este modelo se coloca numa pose, o corpo ainda que imóvel, continua biologicamente se movimentando e todos os outros fatores internos e externos, acima mencionados, continuam se movendo junto. Talvez o único fator que realmente se imobilize numa pose é a expressão, quando ela existe, por que deve ser mantida durante aquela pausa.

Por isso a imobilidade tem que ser também compreendida e considerada de uma forma mais complexa e dinâmica pelos artistas que observam o corpo do modelo, para que então possam, com maior ciência, produzir sua arte cheia de movimentos e propagações constantes.
Foto: Lucas Marques
Isso é importante não só pra quem realiza alguma atividade artística, como desenhar, fotografar e também interpretar personagens no palco ou dançar, mas para qualquer pessoa que tenha ou necessite o mínimo de sensibilidade para tratar com o outro, de relações profissionais às pessoais.

Pois se você tem consciência de que no outro, além de você, nada está parado ou estático e que sentimentos, intenções, conhecimento, vontades, estão sempre se movendo e evoluindo juntamente com a própria necessidade que o corpo tem de se mover, talvez então comece a compreender e respeitar as diferenças que estão por aí, aceitar que ninguém é igual a ninguém e que os pensamentos e verdades do outro não são os seus e nunca poderão ser, pois cada um tem o seu movimento particular e peculiar, em forma e velocidade distintas, e também que nada no universo para, pois as coisas, independentes de nós, têm seu movimento próprio. E necessitamos conviver com todos eles.

Foto: Eva Bella

É por isso que não há tempo para espera de objetivos, de presentes “caídos do céu”, de oportunidades mirabolantes, de momentos propícios para a verdade.

Não há espaço para estagnações de atitudes, de pensamentos, de conceitos. Não há segundos para pré-conceitos, superficialidades e coisas aprendidas de forma errada. Por que o movimento acontece, ainda que não pareça.

Não há pose inteiramente imóvel, mesmo que o corpo pareça imóvel. Não há imobilidade total. Só há pausas, curtas ou longas, para que possamos rever nossos modos e conceitos e aprender com nossas observações. E é para isso também que ali estamos nós Modelos Vivos.

(Fotos e desenhos da série de Performances METAMORPHOSIS Corpo em Transformações, realizada no Centro Cultural São Paulo e SESC, de Dezembro de 2013 a Março de 2014 - assista aos vídeos no YouTube.)

sábado, 5 de julho de 2014

Erotismo

(Clique aqui para aumentar seu prazer em ler, deixe tocando enquanto segue.)
“Nenhum nu, ainda que abstrato, deve deixar de despertar no espectador algum vestígio de sentimento erótico, ainda que seja uma leve sombra – e se ele não o faz, então trata-se de arte ruim e de falsas morais.” (Kenneth Clark, Historiador de Arte)
Foto: Maria Pacca, aula sobre Arte & Erotismo
Erotismo. Quem nunca se envolveu por esta representação do desejo, sexual ou não, que pare agora a leitura. Sim, eu vou falar dele já que a nudez, por um dos caminhos que direciona, sempre desperta a excitação. Sua derivação da palavra grega Eros, cuja definição "atração para a perfeição e integralidade" prefiro mais, nos remete na mesma hora ao mundo do impossível, idealizado, inatingível, perfeito e inteiro, e por isso, a tão forte relação com a nudez e com o sexo. Convenhamos, gozar é finalmente acabar com o desejo, é concretizar tudo aquilo que esperamos e aspiramos do/no corpo do outro. Sendo assim o sexo é fato consumado. Já o erotismo, humm....o erotismo....risos....pode ser tudo o que vem antes, sem a menor sombra de dúvida, ele é o recheio deste bolo que se feito com qualidade, com certeza propiciará o deleite dos dignos advindos do próprio deus grego Eros.
Foto: Maria Pacca

Ele se manifesta através da sexualidade, sim, ok, mas que tal transpormos este prazer (ou pelo menos a busca dele) para outras áreas do dia a dia? Como por exemplo, com a mesma sensação de prazer, realizar o trabalho que ama, com o mesmo brilho, com a mesma gana, sim, com o mesmo tesão. Ou então, com a mesma vontade despertada por ele, passional e também física (por que não), dizer que ama, demonstrar essa ânsia, mostrar que está apaixonado, presentear alguém, passear num parque olhando a natureza com o mesmo tesão de vida que tem quando treme pelo sexo ideal.

É simples, tem que transpor as sensações físicas que o corpo demonstra enquanto é sexualmente desperto, quando, por exemplo, olha pra uma imagem que lhe instigue eroticamente, para as demais vontades da vida. Vocês devem estar pensando que sou um lascivo e que ando por aí olhando as árvores e me excitando, mas não.
Foto: Gabriella Teodozio

Falo é da delícia que é viver, fazer o que gosta, provocar o bem e a alegria nas pessoas, e que a atração faz parte desse prazer. O erótico a que me refiro não é somente aquele que lhe instigará transar, mas principalmente aquele que lhe justificará viver. Experimente hoje cozinhar, que seja, com o mesmo tesão com que deseja alguém e sirva à esposa, aos amigos, ao namorado, enfim, entenderá o que digo.

É neste ponto, desejo versus vida, que o erotismo converge na Arte. Nela, ele lhe faz pensar desejosamente e, também por isso, tão necessário. Quando desejamos, a busca é consequente e fazer, o resultado. Quando o mestre historiador inglês, sir Clark, pontua como ruim a arte que não desperta este sentimento é provavelmente deste arbítrio e de todos os prazeres que ele pressupõe a que ele se refere. E o nu é o que faz isso, o nu tem esta propriedade, graças a Deus (simmmmm a Deus)!!!!

Há no erótico um monte de cobiça, sem dúvida, porém desvincule o objeto sexual dela e encontrará tantas outras formas de prazer. Mas é claro que, sem hipocrisia nenhuma, essa concupiscência da carne, essa lascívia, faz parte e, por favor, que continue sempre existindo; e ainda espero pelo dia em que nossa visão sobre o sexo deixe de ser este monstro arguidor, meticulosamente instaurado pela igreja. E o engraçado é que, paradoxalmente instaurado né?! É na Arte religiosa que moram as obras mais eróticas da história, pesquisem no Google pra vocês verem. Será mesmo só uma coincidência?
Foto: Gabriella Teodozio
Foto: Gabriella Teodozio
Então existe sim o teor erótico no trabalho que realizo e creio também que no dos demais modelos. Lido com ele da mesma forma com que proponho esta reflexão: com PRAZER! Muitos me perguntam o que eu faço quando percebo alguém me desejando enquanto me desenha.

Poxa, o que mais posso fazer senão ficar feliz? Isso me mostra que estou fazendo meu trabalho direito. A partir daí reverto esta felicidade em estímulos de novas significações e procuro dizer, de um jeito improvisado, que usem este desejo em seus traços, em suas pinceladas, depositem esse desejo nos movimentos de seus braços e todo o corpo enquanto me representam, que transponham a vontade de transar comigo para a argila ou para a ocular de sua máquina fotográfica, que com certeza o resultado será surpreendente. Volto a dizer, quando a gente faz as coisas com tesão o resultado é muito melhor.

Foto: Gabriella Teodozio
Foto: Maria Pacca














Por isso sempre digo que os artistas serão sempre aqueles que estarão mais à frente nas reflexões humanas, pois trabalhamos e produzimos aquilo que possibilita o mundo conhecer outras, novas e infinitas realidades. “Bora” gozar a vida?

Foto: Gabriella Teodozio













*** O curso de Arte & Erotismo é ministrado pela artista plástica Maria Pacca e tem a minha contribuição. Para mais informações, por favor, direcionem e-mail para julianohollivier@ig.com.br.