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Foto: Gabriela Cruz |
Após quase 8 anos trabalhando como Modelo Vivo e tendo notado
inúmeras desistências do exercício da observação, além das incontáveis vezes em
que fui naturalmente trocado por outro modelo em trabalhos costumeiros, ou por
cobrarem menos pelas sessões ou por clamarem os artistas sempre por “novos
corpos” para desenharem, meus dedos coçam para escrever e publicar este texto. Sei
que é necessário e muito comum ser premissa nas escolas, ateliês e
universidades de artes a diversidade de tipos físicos, quando oferecem cursos
de desenho, fotografia, escultura e/ou pintura. Entende-se, de uma maneira superficial,
que ter uma infinidade de corpos e
biotipos
distintos para o ensino do desenho e das artes que utilizam a figura humana, é
uma forma de ampliar o conhecimento e referências daqueles que aprendem.
Observar corpos diferentes, como por exemplo, de pessoas magras ou gordas,
atléticas ou não, baixas ou altas, loiras ou morenas, negras ou amarelas, homem
ou mulher, etc, é sem dúvida uma proposição de diversidade no ensino do desenho
(leia-se também “pintura, escultura e fotografia”). Esta multiplicidade é
realmente necessária e concordo com ela. Afinal, se a proposta é a de ensinar a
anatomia humana aos futuros artistas, a diversificação dos corpos fará com que
eles aprendam a desenhar pessoas diferentes. Porém, meu trabalho vai um pouco
além desta proposição. Quem já me desenhou ou fotografou e me acompanha, sabe
do que estou dizendo. Trabalho em direção a um novo conceito de exposição do
corpo, e é por isso que prezo pelo entendimento da palavra “modelo” e me
utilizo sempre de coisas pouco comuns e uma linguagem inovadora enquanto me
apresento. Faço isso por que entendo que, nos dias de hoje, quando a
“molecada” já não nasce sabendo as
proporções do corpo ela abre a internet para estudar em casa esta anatomia,
através de sites que mostram figuras humanas em posições 3D, e por que se
somente for este o intuito a mover professores e mestres da arte a
ensinarem/praticarem em aulas com modelo vivo, tanto a minha quanto as suas profissões
estarão fadadas a terminar. Observar a
figura humana somente pela anatomia que ela tem a ensinar é pouco. A meu ver insuficiente
demais, por que somos fontes incessantes de expressão
e isto é o que faz o exercício da observação ser tão necessário na Arte.
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Foto: Ramon Cavalcanti |
Estava outro dia posando numa aula e uma aluna, que me
desenha desde Janeiro deste ano no curso de Moda da universidade, me perguntou
o que tinha mudado em meu corpo, pois percebia algo diferente nele, naquele
dia. Respondi a ela que tudo era diferente, e assim vinha sendo em todas as 15
aulas anteriores em que me observava. Então chegamos à conclusão de que era o
seu olhar que tinha algo diferente: a capacidade de identificar as expressões
infinitamente diversas que meu corpo (ou qualquer corpo) é capaz de produzir.
Entendo que o exercício do aprendizado da anatomia é
importante, mas a Arte não se limita a isso, por favor! Ele é apenas o primeiro
degrau de um ensinamento infinito. Por isso não me aguento, risos, quando
alguém deixa escapar “– Este corpo de
novo?”, em aulas ou sessões de desenho. É então quando tal comentário me
instiga a fazer tudo de forma tão diferente sempre. Mostrando a todos o quanto
somos repetidamente distintos a cada minuto que passa. Um corpo nunca se
repete, ainda que o Modelo seja o menos criativo e profissional possível. Mesmo
que o Modelo não proponha coisas e linguagens diferentes com seu corpo, ele
nunca será o mesmo. Pois o tempo, minuto a minuto, interfere em seu estado,
consequentemente em seu corpo, consequentemente na observação dele,
consequentemente no entendimento e visualização do artista, consequentemente no
resultado registrado (desenho, pintura, escultura ou fotografia). Penso então
que de mim depende evidenciar isto nos lugares em que trabalho. Mas é claro que
muitos não entendem ou não percebem a diferença. Partem logo para a constatação,
na maioria das vezes equivocada, da “matéria já aprendida com aquele corpo”, ou
então, para a troca do modelo por uma "maior diversidade". Hummm... Não há o que se repita no corpo desnudo, e está aí outro motivo da nudez neste ofício. O artista (aluno ou professor) que não é
capaz de compreender esta irrepetibilidade, há que se exercitar com os exercícios de autorretrato.
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Foto: Gabriela Cruz |
O ator que repete, por exemplo, a mesma cena ou texto um
milhão de vezes, se necessário, jamais o fará da mesma forma em nenhuma delas.
Pois seu corpo é a “máquina” repetidora e ainda que suas intenções sejam sempre
as mesmas, sua “máquina” não é uma máquina. É sim um sistema codificado com suas
emoções, estados, relações com o ambiente em que está, pessoas que o observam, naturalmente
influenciado por situações inesperadas e alteradoras. É um corpo vivo que
informa e transporta a informação. Por isso é
irrepetível. Sendo assim, não há o que se ver novamente num corpo
observado. Só há o que se descobrir diferente nele.
Por estudar tanto as possibilidades expressivas do corpo que
tenho, e sendo ator e estudante eterno das artes dramáticas, tento e procuro
sempre fazer com ele o que eu realmente quero. Posso não conseguir às vezes,
mas através do peso, da força, do direcionamento, da contextualização cênica,
do uso de minhas articulações e repertório cognitivo, estou sempre propondo
personagens aos olhos dos mais atentos, e posso até me fazer passar por velhos,
obesos, altos, magros, mulheres, bichos e monstros, se necessário for. Mas o
que realmente importa não são as personagens que meu corpo tentará representar,
mas a forma que usarei para representá-los. É o
‘como’ e não
‘o quê’, e é
isto o que faz o artista crescer com a sua observação. Quando digo que trabalho
com um novo conceito de exposição do corpo, refiro-me à exposição de tudo
aquilo que se mostra visível através de um conteúdo, formado pelas experiências
e vida deste corpo, pela criatividade, coragem, desempenho e história dele. Me
utilizo muitas vezes de linguagens cênicas, de iluminação característica, de
estímulos musicais cuidadosamente criados e/ou selecionados, de textos
literários e poéticos, na maioria das vezes por mim mesmo escritos, para que a
soma de tudo isso possa proporcionar infinitas interpretações e entendimentos às
pessoas que observam, desenham ou fotografam minha Arte. Também para que a arte
delas seja, quem sabe, tão plena de amor quanto a minha e para que o resultado desta
troca possa fazer algum sentido para todos nós. Este é o propósito do trabalho
que realizo, e por isso contemporâneo, pois até então só se observavam corpos
passivos de observação e não proponentes dela. E aí? Vamos repetir?
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Foto: Eva Bella |
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