(Imagens não creditadas: artista plástico e modelo vivo não divulgados. Levantando informações de autoria.)
Recentemente
fui solicitado por um amigo venezuelano a opinar sobre o que ele chamou de arte
erótica e de como seria para o modelo vivo se expor em trabalhos que continham
esta intenção. Enviou-me pelo celular fotos de aquarelas de figuras humanas
masculinas representando o desejo sexual, libido aflorada e ejaculações para
ilustrar o que chamava de erotismo.
Observei por
vários minutos as imagens antes de começar a gravar uma resposta espontânea.
Pensei primeiro sobre os rótulos que damos às coisas e as consequências de
categorizarmos tanto a arte. Me questionei se o que entendia por erótico era
mesmo aquilo que olhava nas aquarelas. A resposta mais rápida foi a palavra
pornografia, que surgiu como um luminoso vermelho piscante. Na sequência
comecei a gravar o que chamaria de “áudio inaudível” via whatsapp: quase 15
minutos de falação, que eu mesmo talvez não teria paciência para ouvir se estivesse na correria do dia a dia. Depois
de enviá-lo, demorei um dia para voltar a escutar tudo o que tinha dito. Como
se fosse uma certificação ou validação de posicionamento sobre um assunto que
há tantos anos faz parte de minha vida. Se não fosse a seriedade deste tema e
sua relação com conceitos tão profundos de nossa existência, diria que nunca
fui tão contraditório com aquela resposta.
Falamos de
desejos, de absoluta entrega e exposições sem máscaras, de conexões com o outro
quando falamos de libido, quando sentimos tesão. O desejo sexual e a sua
consumação podem ser talvez um dos únicos momentos da existência em que o homem
se despe totalmente da moral. Creio que é aí que mora o real motivo de tanta
preocupação com o desejo sexual alheio, já que entregues, nos sentimos nas mãos
do outro, completamente desprotegidos.
Na resposta comecei
dizendo que o que ele chamava de arte erótica era pra mim arte pornográfica. Reconhecia
a qualidade técnica das aquarelas e do contexto sexual presente nos trabalhos. Do
alto de minha certeza, presunção até, discorri sobre mostrar ou não mostrar o
sexo rígido nas aquarelas, enfatizando a dispersão da libido do observador de
forma absolutamente tão direta. Contextualizei as diferenciações entre erótico
e pornográfico, no meu entendimento, dizendo que o primeiro acontece quando o
artista apenas sugere sensações de prazer sexual e de tantos outros prazeres e
que o segundo é quando o artista mostra a excitação do sexo na sua totalidade. Acrescentei
que quando há a sugestão, dando ao observador não uma, mas inúmeras
possibilidades de leitura isso tem pra mim mais valor cultural e artístico do
que quando o artista nos dá apenas uma opção de entendimento. Quando olhamos
para um desenho ou aquarela que nos faz sentir várias coisas diferentes, que
despertam reflexões sobre nós mesmos e até sobre os outros, isso costuma ser
para mim algo com mais conteúdo artístico. Isto não acontece quando o propósito
do artista, através de sua obra, direciona a minha observação para um único
caminho, o sexual neste caso.
Estendendo o
assunto para o artista que expõe sua nudez, os modelos vivos, propósito maior deste texto, penso
que se nos colocamos diante do(s) observador(es) também com este único intuito,
o de despertar desejos sexuais, esta atitude limita o processo criativo de quem
nos observa e também a nós mesmos enquanto posamos. A interpretação erótica e
sexual da nudez é apenas UMA possibilidade. Existem diversos outros sentimentos
e sensações que o nu é capaz de despertar, senão, de conduzir à reflexão sobre alguns
deles. Segundo Kenneth Clark (1956), renomado historiador britânico de arte e
autor do livro THE NUDE, A STUDY IN IDEAL FORM, o nu como gênero artístico personifica-se
através de conceitos relacionados à Harmonia, Energia, Êxtase, Humildade e
Piedade (pathos). Depois de mais de
10 anos trabalhando com a exposição da nudez constatei que são inúmeros os
conceitos, sentimentos e emoções que ela pode atingir, modificar, provocar,
transformar e fazer nascer. O que mais gosto de explicitar são os sentimentos
decorrentes do respeito às singularidades humanas, promovidos pela comunicação
consciente e abrangente do corpo nu. Já tive a oportunidade de ver grandes
transformações humanitárias e muito positivas em pessoas com quem trabalhei. Respeito
por diferenças sociais, raciais, anatômicas, de gênero, de orientações sexuais,
religiosas e outras mais. Também vivenciei situações em que a exposição de meu
corpo nu auxiliou na aceitação e respeito do próprio corpo dos que me observavam.
Acredito que o trabalho consciente e
abrangente (artística e corporalmente falando) foi responsável por estas
transformações. E sempre que transformamos para melhor os conceitos do outro,
também nos modificamos. A transcendência é pra mim um dos principais motivos da
Arte.
Não podemos deixar de considerar que categorizações como estas sobre o
erotismo e a pornografia na arte se modificam com o decorrer do tempo, da
história. Se fluidificam de acordo com às diferenciações de época, cultura,
região, temperatura média, religião e tantos outros fatores. O artista Egon
Schiele (1890-1918, Áustria), por exemplo, pintor expressionista hoje
mundialmente reconhecido, possui trabalhos extremamente eróticos e outros
pornográficos, segundo as considerações austríacas da época que o levaram
inclusive para a prisão. Foi condenado por imoralidade, pornografia e corrupção
de menores.
Suzanne Valadon (1867-1938, Paris), modelo vivo e pintora pós-impressionista que teve uma participação marcante na cena artística parisiense, foi acrobata circense e tornou-se parte integrante das obras de Renoir e Toulouse-Lautrec. Iniciou-se na pintura sob a orientação de Degas e foi a primeira mulher a fazer parte da Sociedade Nacional de Belas Artes. Muitos de seus trabalhos como modelo vivo foram considerados como pornografia na época, o que para nós hoje, podem ser apenas entendidos como eróticos.
Ton of Finland (1920-1991, Finlândia), artista conhecido por seu trabalho homoerótico, esperou 30 anos para ter sua arte reconhecida. Seu trabalho possui uma representação de detalhes e perfeição de luz e sombreamento, e podemos perceber a proposta política e artística dentro da pornografia.
O polêmico fotógrafo alemão Wolfgang Tillmans (1968), premiado pela Tate Gallery, é considerado hoje talvez o mais famoso da história da fotografia por revistas importantes sobre fotografia e arte. Assim, também existe muita pornografia na fotografia reconhecida artisticamente pelo mundo e que estão expostas em grandes museus e importantes galerias. Neste caso, sem limites o fotógrafo expõe com sucesso e de maneira diferente tudo aquilo que vivencia e fotografa. A forma como conta as histórias e conecta as imagens de diferentes mundos o faz ser considerado um gênio.
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(Egon Schiele, sketch
book, 1916)
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(Suzanne Valadon no quadro de Toulouse-Lautrec, 1892) |
Suzanne Valadon (1867-1938, Paris), modelo vivo e pintora pós-impressionista que teve uma participação marcante na cena artística parisiense, foi acrobata circense e tornou-se parte integrante das obras de Renoir e Toulouse-Lautrec. Iniciou-se na pintura sob a orientação de Degas e foi a primeira mulher a fazer parte da Sociedade Nacional de Belas Artes. Muitos de seus trabalhos como modelo vivo foram considerados como pornografia na época, o que para nós hoje, podem ser apenas entendidos como eróticos.
Ton of Finland (1920-1991, Finlândia), artista conhecido por seu trabalho homoerótico, esperou 30 anos para ter sua arte reconhecida. Seu trabalho possui uma representação de detalhes e perfeição de luz e sombreamento, e podemos perceber a proposta política e artística dentro da pornografia.
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(Ton of Finland, “Desenhos Sujos, 1950) |
O polêmico fotógrafo alemão Wolfgang Tillmans (1968), premiado pela Tate Gallery, é considerado hoje talvez o mais famoso da história da fotografia por revistas importantes sobre fotografia e arte. Assim, também existe muita pornografia na fotografia reconhecida artisticamente pelo mundo e que estão expostas em grandes museus e importantes galerias. Neste caso, sem limites o fotógrafo expõe com sucesso e de maneira diferente tudo aquilo que vivencia e fotografa. A forma como conta as histórias e conecta as imagens de diferentes mundos o faz ser considerado um gênio.
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(Registro de Daniela Petrucci em exposição de Wolfgang Tillmans, Tate Gallery, Londres 2017) |
Inevitavelmente, ao despirmo-nos diante de uma
plateia, entramos em contato com os conceitos alheios sobre o nu. Questionamentos
advindos de julgamentos sobre o que é arte ou moralidade costumam preencher
salas de aula com alunos iniciantes na observação do modelo vivo. É possível
que tais dúvidas também habitem a mente do público em geral, quando este
observa pinturas, desenhos, esculturas, fotografias, filmes, performances e espetáculos
teatrais feitos a partir do corpo desnudo. Talvez, para rechear nossas
considerações sobre “falsa arte e más morais” (CLARK, 1964), o correto seja nos
questionarmos por que a representação da libido e do sexo na arte ainda sofre categorizações
negativas e causa repúdios tão radicais. As respostas poderão nos levar a
reflexões não só sobre desejos escondidos, mas também aos não assumidos, às
ações consequentes de possíveis omissões, ao conhecimento das instituições
beneficiadas com esta atitude e às consequências negativas decorrentes. É inegável a força da apresentação do corpo
nu. Porém, dizer que um trabalho artístico é equivocado e se trata de falsa
arte, é um tanto quanto presunçoso. Posso ter sido muito presunçoso ao dizer ao
amigo que as imagens que me enviou pelo celular não se tratavam de arte erótica, consequentemente
o mesmo para o trabalho realizado pelo modelo que posou para tais aquarelas. Aliás, dizer o que é e o que não é arte é algo realmente muito arriscado. É necessário
algum tempo de reflexão, de considerações, de observação, de repertório
artístico e intelectual, de vivência em um meio onde a arte se exprime. Acima de
tudo, entender a arte como tal é, no meu entendimento, ser transformado por
ela.
Portanto, se
alguém se transforma ao ver corpos expelindo sêmen, modelos vivos posando com o
sexo excitado, quem sou eu para dizer que isto não se trata de arte? Sou apenas um
profissional que preza pela manutenção e reconhecimento do meu ofício, como
profissão e como algo que agrega o conhecimento das pessoas. Como tal, não
posso deixar de considerar o terreno marginalizado e periférico que abriga esta
condução da nudez pornográfica. Não vemos com frequência, conteúdos muito
elaborados dentro deste tema, o que não é o caso destas imagens. Mas, seria no mínimo hipócrita de minha parte e da
parte de todo modelo vivo profissional não enxergar que são necessárias
inúmeras ressignificações do contexto sexual na arte, para realizá-la com
alguma acuidade.
Resta-nos saber escolher em que terreno podemos conduzir a
aceitação, o conhecimento e a manutenção de nossa profissão. Se optarmos pela
exposição pornográfica de nossos corpos, poderemos estar limitando os olhares
sobre o que fazemos, conduzindo-os apenas à leitura sexual, como já disse.
Ainda que o trabalho tenha este único propósito, precisamos olhar para as
consequências negativas disso, que afetam uma profissão que tanto se extingue
como algo artístico e que necessita de estudo para ser realizada. Hoje em dia e
quase sempre, qualquer pessoa sem o mínimo conhecimento corporal e artístico
pode tirar a roupa e permanecer parada para o registro artístico. Porém, o trabalho do modelo vivo vai além desta falta de roupas e imobilidade ilusória. E se pretendemos
ser modelos que interagem na criação artística é inevitável que consideremos o
todo (a si próprio, ao outro e ao ambiente em que vivemos) e que estudemos para
adquirir participação neste processo. Ampliar nossa consciência de corpo e o entendimento
sobre a abrangência da exposição da nudez é um diferencial que, possivelmente,
nos aproxima da grandeza deste trabalho e das transformações que somos capazes
de impulsionar. Limitar a leitura do corpo nu é agir contra suas motivações e
possibilidades.
Após ouvir a mensagem enviada a meu amigo, senti
vontade de escrever a respeito e de também refletir um pouco mais sobre. Propostas
artísticas não merecem se limitar, elas se exteriorizam através do artista para
ganhar o mundo metafórico e transformador. O erotismo nos desperta para as
buscas e conceituações. A pornografia nos traz a certeza de nossos desejos
sexuais. Então, por que responder com certezas anseios tão profundos do homem?
Seria a arte feita de certezas?
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