sexta-feira, 18 de julho de 2014

Imobilidade Ilusória

Foto: Lucas Marques
Após alguns anos de trabalho com a imobilidade pude entender algumas coisas que são tão importantes, a meu ver, para nós artistas e não artistas, que faço questão de compartilhá-las aqui no Blog.

Certa vez em aula, uma aluna reclamou ao professor que eu tinha me mexido e por isso seu desenho estava desproporcional (tenho que informar que somente o dela e não os de todo o resto da classe). Sim, claro, o que havia se mexido tinha sido apenas minha barriga, que se movia naturalmente a cada inspiração e expiração. Meu corpo permaneceu dentro das marcações por todos os 20 minutos cronometrados. E olha que eu procuro diminuir a intensidade de minha respiração enquanto poso além de controlar o piscar dos olhos. Porém, naquela situação, pensei: “mas que parte do ‘vivo’ do Modelo Vivo esta aluna não entendeu?”.
Foi então que decidi um dia escrever sobre isto.

Desenho de Filipe Rios

Todos sabem que ficamos horas parados em poses que são observadas e registradas pelos artistas plásticos, arquitetos e fotógrafos. Sabem também que, para que este registro seja o mais preciso possível, é necessário que nos mantenhamos completamente estáticos no espaço.

Esta grande pausa está relacionada à adequação do corpo ao espaço que, enquanto observando, o observador cria relações de direcionamento, estrutura, nivelamento, proporções, volume, luminosidade e sombreamento e principalmente de foco na expressão que o modelo propõe naquele exato momento, tempo e local da pose.
Tudo está relacionado com o ambiente físico, psicológico e intelectual dos que estão presentes numa sessão, e por isso, estritamente vinculado ao direcionamento imóvel do corpo em relação ao espaço.

Foto: Lucas Marques
Sempre digo que a pose é uma consequência de um movimento, uma rápida situação congelada do corpo que se move em direção a um objetivo. Os movimentos nos levam a algum lugar e são disparados por objetivos, sendo assim, mover-se é uma consequência de um estímulo.

No teatro, na dança ou na performance, ambientes em que a movimentação é criada e conduzida para a observação de um público, este movimento é interpretado de acordo com o repertório de quem o vê. Sofre, por consequência, juízo de valor e aceitação ou não das suas proposições de mensagens.

Pensando o corpo do Modelo Vivo, que permanece estático durante a observação das pessoas, como ficam as proposições de movimentação deste corpo? Como se encaixam os objetivos para o fazerem se mover? Como se adequam os lugares/público que deveriam receber este corpo que se movimenta em direção a eles, ou por eles? E como ficam os valores de juízo (agora não mais juízo de valores) quando o público observa este novo corpo?
Desenho de Rafael Moraes
Considerar efêmera a pose de um Modelo Vivo, como uma fração de segundo de um corpo em movimento, assim como também considerar da mesma forma o mover-se na vida (real ou artística), torna possível a identificação de pequenos e grandes gestos realizados na Arte e no dia a dia.
O corpo de hoje, artista ou não, se move com maior conhecimento dos universos que o contemplam. Move-se de uma maneira completamente mais habitada pelo seu propositor. Move-se considerando o corpo do outro, se adaptando aos movimentos do outro e se interferindo com ele, sendo naturalmente dependente de transformações e ressignificações. Os corpos que assim ainda não se movem, estão defasados.
Foto: Osíris Lambert

Há também o movimento biológico constante que este corpo sofre, com diferenciações do corpo desconexo e desinformado. Nele o movimento dos estímulos e sinapses nervosas, o movimento do sangue que percorre e alimenta suas estruturas, o movimento das emoções que alteram suas ações e tantos outros movimentos corporais biológicos, passam a acontecer de forma diferenciada, já que o conhecimento destas características físicas e somáticas dá a elas uma autonomia consciente e real de suas ações.
Quem, hoje dia, não tem consciência dos movimentos biológicos próprios? Com o “boom” do bem-estar saudável, das academias e exercícios físicos, da busca quase obsessiva pelo corpo ideal, quem não se informa sobre seu metabolismo corporal? Está aí outro benefício do nosso “oráculo virtual” Google. Ainda que este corpo continue se movimentando biologicamente nos momentos que independem de sua vontade, o conhecimento sobre eles exerce uma diferenciação.
Desenho de Gui Blanco
Um corpo que propõe constantemente novos discursos ativando mediações, como é o corpo de um Modelo Vivo, com certeza se move diferentemente no meio em que vive.

Seu movimento deixa de ser a consequência de um estímulo e passa a ser o próprio estímulo, que se move com pequenas pausas em direção a uma transformação, e não mais a um “lugar”.
No corpo não há o que se torne imóvel e sendo assim qualquer iniciativa de imobilidade, para a observação do espectador, se torna ilusória e também passível de alterações.
Foto: Lucas Marques

Para este corpo que é observado em pausas, onde a interferência dele sobre o universo é fundamental, o entendimento sobre imobilidade é altamente modificado. Nos dias atuais, sequer aqueles com problemas de mobilidade deixam de se mover. Mover-se é o objeto de busca da manutenção da vida.

Há sem dúvida a necessidade de pararmos muitas vezes para compreendermos e estudarmos coisas relacionadas ao viver, porém estas pausas já não são também mais as mesmas. Quando se para num determinado momento, a continuidade dos movimentos internos é cada vez mais intensa e verdadeira. E quando um artista, por exemplo, observa o corpo ilusoriamente imóvel de seu modelo como “objeto” de estudo, a ilusão causada de que este corpo está parado é determinante e estimulante na proposição de sua arte.
Ao meu entendimento, o corpo modelo observado pode estar num estado ilusoriamente imóvel de forma ativa, quando continua propondo mediações, e de forma passiva, quando ainda propondo mediações passa apenas a não demostrar suas alterações ao observador. No trabalho realizado pelo observado, quando parado e objeto de observação, a imobilidade não acontece.

Especificamente falando sobre o Modelo Vivo, que se coloca “imóvel” diante de um artista, o que está em movimento antes da pose alcançada é a sua mente, seu corpo, suas sensações e emoções, suas expressões, a energia reverberada por seu corpo no espaço e retornada a ele, além da própria observação da pessoa que espreita seu momento de “imobilidade” para então registrá-la através de sua mídia. Movem-se também as expectativas do artista sobre o corpo do modelo.
Desenho Filipe Rios

Quando este modelo se coloca numa pose, o corpo ainda que imóvel, continua biologicamente se movimentando e todos os outros fatores internos e externos, acima mencionados, continuam se movendo junto. Talvez o único fator que realmente se imobilize numa pose é a expressão, quando ela existe, por que deve ser mantida durante aquela pausa.

Por isso a imobilidade tem que ser também compreendida e considerada de uma forma mais complexa e dinâmica pelos artistas que observam o corpo do modelo, para que então possam, com maior ciência, produzir sua arte cheia de movimentos e propagações constantes.
Foto: Lucas Marques
Isso é importante não só pra quem realiza alguma atividade artística, como desenhar, fotografar e também interpretar personagens no palco ou dançar, mas para qualquer pessoa que tenha ou necessite o mínimo de sensibilidade para tratar com o outro, de relações profissionais às pessoais.

Pois se você tem consciência de que no outro, além de você, nada está parado ou estático e que sentimentos, intenções, conhecimento, vontades, estão sempre se movendo e evoluindo juntamente com a própria necessidade que o corpo tem de se mover, talvez então comece a compreender e respeitar as diferenças que estão por aí, aceitar que ninguém é igual a ninguém e que os pensamentos e verdades do outro não são os seus e nunca poderão ser, pois cada um tem o seu movimento particular e peculiar, em forma e velocidade distintas, e também que nada no universo para, pois as coisas, independentes de nós, têm seu movimento próprio. E necessitamos conviver com todos eles.

Foto: Eva Bella

É por isso que não há tempo para espera de objetivos, de presentes “caídos do céu”, de oportunidades mirabolantes, de momentos propícios para a verdade.

Não há espaço para estagnações de atitudes, de pensamentos, de conceitos. Não há segundos para pré-conceitos, superficialidades e coisas aprendidas de forma errada. Por que o movimento acontece, ainda que não pareça.

Não há pose inteiramente imóvel, mesmo que o corpo pareça imóvel. Não há imobilidade total. Só há pausas, curtas ou longas, para que possamos rever nossos modos e conceitos e aprender com nossas observações. E é para isso também que ali estamos nós Modelos Vivos.

(Fotos e desenhos da série de Performances METAMORPHOSIS Corpo em Transformações, realizada no Centro Cultural São Paulo e SESC, de Dezembro de 2013 a Março de 2014 - assista aos vídeos no YouTube.)

Um comentário:

  1. Juliano, parabéns pelo texto. Realmente, embora haja uma pose, uma situação de estática, todo o restante está em movimento, e cabe ao artista captar e reproduzir a seu modo, com toda a liberdade e subjetividade. É isso? Quanto mais conheço seu trabalho, mais admiro. Você é um lindo exemplo..

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