quarta-feira, 25 de junho de 2014

Fadado ao Término?

Tenho notado nos últimos anos que nosso trabalho vem diminuindo lentamente. Vejo as escolas de desenho, os ateliês particulares e as universidades de artes plásticas, arquitetura, fotografia, design e moda, nos contratando cada vez menos em suas aulas. Temos participado, ano a ano, de forma mais rarefeita no cenário educacional da arte. Sobre a importância de nossa participação como modelos vivos na educação e ensino artísticos, creio que preciso publicar um texto dedicado a este assunto, porém agora me devo ater somente ao fato de que estamos trabalhando cada vez menos, o que me instiga a escrever a respeito para levantar questionamentos sobre os motivos desta baixa. E não serei hipócrita em dizer que apenas a educação artística e o próprio fazer artístico estão perdendo qualidade, mas também tenho que dizer que o pouco trabalho que acontece, quando acontece, vejo sendo feito “às coxas”.

Há uma diminuição notável das oportunidades de trabalho para o modelo vivo nos dias de hoje. Muitas questões enchem minha cabeça:  O que está deixando de existir? O interesse pela arte? Não acredito, pois vejo todos os anos novas turmas cheias de alunos abarrotando as faculdades públicas e privadas; vejo também abarrotadas as oficinas gratuitas de desenho com modelo vivo. Falta de verba nas instituições, para oferecerem mais qualidade ao ensino? Também não, pois as mensalidades estão sempre cada vez mais astronômicas e, repetindo, sempre mais e mais alunos ingressando os cursos. Falta de conhecimento dos proponentes, coordenadores, diretores, professores e reitores dos cursos de arte, no que se refere à importância da observação da figura humana nas aulas de desenho? Talvez.

Vamos aos fatos. Em 2009, 2010 e 2011 cheguei a trabalhar como modelo vivo, por exemplo, numa universidade particular de São Paulo, de três a quatro vezes por semana durante todo o ano. Éramos em média oito modelos que assinávamos a grade mensal de aulas práticas nesta faculdade. Requisitavam-nos para posar nas aulas dos cursos de arquitetura, artes plásticas e moda através de uma distribuição prévia feita pelos professores, que nos contratavam sempre com muita antecedência, devido a pouca quantidade de profissionais. Não queriam “correr o risco” de não nos terem em suas aulas, caso fôssemos chamados por outras universidades. Existia mais oferta de trabalho do que pessoas trabalhando na área. Em 2014, até a data de hoje, trabalhei nesta mesma universidade por apenas três vezes. E assim foi com demais colegas que, também como eu, desempenhavam um trabalho assíduo na instituição.

Nos anos de 2010, 11 e 12, também exercia meu ofício em uma universidade pública como contratado sempre por quatro meses no primeiro semestre e quatro meses no segundo, com total máximo de horas/aula permitidas dentro da instituição. Em 2013 a prestação de serviços se reduziu para apenas o segundo semestre e em 2014, já soube que acontecerá por apenas quinze dias e não mais por quatro meses. Noutra faculdade particular de Moda em São Paulo, já fui chamado para posar nos anos de 2011 e 2012 em aulas fixas que aconteciam duas vezes por semana durante o ano todo e que hoje se resumiram a apenas uma única aula optativa em todo o ano letivo. Estas aulas todas consideravam participação, frequência, valiam nota e ao final dos períodos aconteciam provas e avaliações. Os alunos que não aprendiam a desenhar a figura humana repetiam o ano. Hoje em dia, as poucas aulas que restam, estão se tornando “optativas”.


Participei de 2009 a 2013 de um grande evento de desenho e fotografia do corpo num renomado museu de arte de São Paulo e acabo de receber a mensagem negativa da continuidade do programa para este ano. O que aconteceu?  O que está acontecendo com nossas aulas tão importantes da observação do corpo e das infinitas proposições que oferecemos através dele?

Creio verdadeiramente que é um misto de coisas. Não se trata só do não entendimento de nossa importância para o estudo, daqueles que propõem os cursos nas faculdades, os “estrategistas” da educação que muitas vezes visam formar “curadores de arte” e não artistas, ou então reduzem ao máximo o trabalho manual dos estudantes a fim de conter custos e aumentarem seus lucros. Não se trata apenas do desconhecimento sobre o que fazemos nós, modelos vivos, em suas instituições de ensino em cursos como os de artes plásticas, arquitetura, fotografia, design e moda, não é só isso. As justificativas dadas são sempre as mais óbvias, como diminuição de budget (?), menor participação dos alunos (?) e novas diretrizes do “moderno” ensino de arte (!!! Talvez a única verdadeira!!!).

Considerando que o gasto de uma instituição de ensino com seu material humano (professores, coordenadores e demais recursos envolvidos, incluindo nós modelos) é planejado anual ou semestralmente e, determinada a necessidade da existência das aulas de observação, este valor é certamente repassado às mensalidades finais pagas pelos alunos, e no caso das públicas, coberto pelas verbas estaduais/federais de ensino resultantes de nossos impostos, o motivo financeiro não se justifica.

Sobre a questão da participação do aluno, diminuir a quantidade de aulas ou a existência delas por que eles não conseguem acompanhá-las é realmente um assunto crítico, pois não se pode comprometer a qualidade do ensino e consequente incapacitação de profissionais por que uma determinada quantia de pessoas não está apta a acompanhar as aulas. Não é essa a função do ensino? A de ensiná-las e prepará-las? Se todos já soubessem fazer, não seria preciso aprender!
Que moradias estaremos habitando futuramente, por exemplo, se nossos futuros arquitetos não souberem compreender a máxima do corpo humano, representando-a de forma coerente, proporcional e coesa com o que precisamos?

Que tipos de cadeiras ou sofás, outro exemplo, estarão comprometendo nossa postura e saúde enquanto sentarmos por aí nos móveis futuramente projetados por estes novos designers que sequer tiveram uma aula de observação da figura humana, para poder entender sua estrutura e criar objetos que sejam condizentes com a realidade do corpo?
Quais outros padrões de beleza serão replicados para massificar a vestimenta das pessoas, se os futuros estilistas de moda não souberem mais desenhar o corpo, pois não tiveram uma aula sequer de desenho conosco? Que roupas estarão criando? Para vestir quem? Seus modelos predeterminados pelas regras da moda? Que tamanhos de vestimentas saberão construir? Os dos padrões P, M, G?? Como criarão “roupas sustentáveis” se não pararam um dia sequer para observar com atenção o seu principal cliente: o ser humano? Sem falar nas decorrentes consequências da replicação de padrões que sequer imaginamos, como por exemplo, os transtornos alimentares e cirúrgicos que muitas mulheres sofrem simplesmente por não “se adequarem” aos atuais padrões de tamanhos replicados na moda.

Claro que tudo isso é uma exaltação de consequências generalizadas, mas são consequências de um ensino de arte desqualificado. Também não quero aqui estacar a bandeira “viva modelo vivo” por que não é brincadeira este assunto, mas quero apenas que as pessoas que ainda estiverem lendo este texto se atentem para a importância de nosso ofício e promovam e cobrem das instituições a existência de aulas de observação com modelos vivos profissionais.

Voltando às justificativas comumente dadas, talvez a única que se adeque à realidade é a das diretrizes novas do ensino da Arte. Vê-se hoje em dia menos “mão na massa”, menos aulas práticas, menos gente pendurada nas salas de aula fazendo arte e muito mais pessoas debruçadas nos computadores, adquirindo conceitos para a produção de uma arte apenas conceitual. Desta forma, como caminha, é só arte conceitual que conseguirão fazer. Não sei sinceramente o que é pior, risos, se sentar na tal cadeira do futuro fodendo minha coluna ou então ter de visitar virtualmente, provavelmente mal acomodado num sofá daqueles, as exposições de arte conceitual. Não é tão difícil prever.


Se o intuito dessas novas estratégias é o de “fabricar” artistas que só pensam, e não realizam, seus conceitos, o que teremos como matéria? O que teremos como obra? Curadoria artística não existe sem artistas e muito menos sem suas obras. Vamos consumir o que da arte? Replicações constantes? Releituras de rereleituras? Socorro!!!! Talvez seja preciso, que nós consumidores do ensino, exijamos e pratiquemos a tal qualidade para não abandonarmos o barco que aportamos quando decidimos ser artistas.

Aproveitando a metáfora do barco, assumo aqui minha parcela de culpa nesta diminuição de oportunidades de trabalho, não como modelo, pois acredito na minha capacitação artística e no trabalho que desenvolvo, nem como Juliano, mas unicamente por fazer parte de uma pequena (quase microscópica) parcela de pessoas que expõe a própria nudez para que tenhamos artistas mais capazes. Se não temos mais tantas oportunidades de trabalho assim como antigamente, nem tão antigamente assim, é também culpa nossa.

Culpa dos modelos que infelizmente acham que realmente é só ficarem pelados e parados “ganhando seu troco”, que não são capazes de propor nada além de sua peladice, que não promovem a mediação entre o que pensam, o que sentem, o que acham do mundo, o que esperam dele e a arte que os alunos/artistas estão ali para fazer.
Culpa de nós modelos que não chegamos no horário marcado, ou por que o trânsito engarrafou ou por que o ônibus quebrou, culpa de nós modelos que atrasamos uma aula e deixamos cinquenta, as vezes sessenta, pessoas nos esperando (já vi acontecer de 380 alunos esperarem ao mesmo tempo o modelo atrasado chegar), culpa de nós modelos que chegamos “esbaforidos” da correria do dia a dia para posar nas aulas sem o menor preparo do que dizer com o corpo ou do que propor aos observadores.

Se a quantidade de aulas vem diminuindo, é também culpa nossa que não fizemos até hoje dessas aulas as melhores aulas da vida destes alunos. Culpa nossa por não praticar o respeito para merecermos ser respeitados, culpa nossa por chegarmos sempre com a mesma cara cansada e sem nenhuma proposta de inovação à aula, por simplesmente tirarmos a roupa e nos apoiarmos na imobilidade, vestindo-nos do “eu tô fazendo a minha parte e basta”. Culpa nossa por não insistir no uso de uma música qualquer, por exemplo, para melhorar a aula e fazer com que os alunos se desprendam mais facilmente dos medos da nudez e foquem na observação. Culpa nossa por não estudarmos diferentes formas de dizer as coisas com nosso corpo, e sempre nos colocarmos naquela postura “meia boca” do contraposto “davinciano”.

É culpa nossa por não trabalharmos de forma atualizada e em sintonia com a realidade de hoje, para propormos algumas quebras e melhoras. É nossa culpa não conseguirmos fazer com que as aulas de modelo vivo sejam tão desejadas que não se possa pensar num curso de arte qualquer sem a existência delas.

É por isso que escrevo para que, não só os alunos e estudantes de arte, mas também os professores e principalmente os próprios modelos que se propõem ao trabalho possam refletir sobre COMO estamos fazendo este trabalho.
Ele tem sido diferente a cada dia? Ele tem sido inesquecível a cada momento? Ele tem modificado a forma de ver das pessoas? Se a resposta for não para qualquer uma destas questões, então ele não está sendo feito direito. E se assim for, mude de postura ou de profissão, para que possamos recuperar o exercício da importância deste ofício.
 *** Fotos das aulas costumeiras e ainda existentes, ministradas sempre com tanta maestria pelo professor Feres Khoury, no curso de Arquitetura da USP.




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